Katniss, Anastasia e os finais felizes

Antes de iniciar esse texto quero avisar que ele contém spoilers dos capítulos finais das trilogias: 50 Tons de Cinza e Jogos Vorazes.

Intrigada. Não tem palavra melhor para descrever o que senti quando terminei de ler o último livro da trilogia ‘Jogos Vorazes’ (Hunger Games) e identificar nas cenas finais tanta semelhança com o final de outra trilogia de sucesso: ‘Cinquenta Tons de Cinza’ (Fifty Shades of Grey). Duas heroínas que aparentemente não tem nenhuma semelhança.

Capas dos livros das duas trilogias.

As semelhanças entre os dois finais são muito grandes, pelo menos assim achei. Cenário, sentimentos, momento de vida, conclusões das protagonistas, tudo muito parecido. Num primeiro momento não consegui entender e, esse texto é uma tentativa de por minhas idéais em ordem, para tentar enxergar como duas histórias tão enormemente diversas, com duas personagens que vivem uma jornada que as transforma tão profundamente, de maneiras tão diferentes, podem convergir tanto nas cenas finais de suas histórias. Como podem acabar de maneira tão parecida?

Além do final ser parecido nas duas histórias ele também é extremamente previsível. O que nos livros da série ‘Cinquenta Tons’ me pareceu normal, diante dos clichês preconceituosos e de todo o moralismo contido no discurso de Anastasia. Porém, no caso de ‘Jogos Vorazes’ o final da trilogia me deixou mais decepcionada. Afinal, a história se passa num tempo diverso, num lugar fictício, uma sociedade que não precisa reproduzir os padrões da nossa, pois é um mundo completamente outro. Por que não tirar partido disso? Por que não um final improvável? Por que manter um final onde um dos estereótipos femininos mais largamente difundidos é reforçado como ápice da vida das mulheres? Fiquei decepcionada e perturbada com isso, honestamente perturbada.

Comecei então a pensar em vários livros que li e nos finais deles. E, de repente, muitos deles tinham essa mesma cena repetida, e repetida e repetida. Esse final onde os elementos da estória e do roteiro se perdem, ficam em segundo plano e a história de amor passa a ser o mais importante. Essa história de amor romântico monogâmico e heteronormativo que culmina em um casamento, com filhos bonitos e saudáveis, como vemos tantas vezes repetidas nos comerciais de margarina. Eu me pergunto: por que toda história tem que desembocar nessa família tradicional e patriarcal com arranjos de cenário que cada estória exige segundo sua trama? Foi isso que me intrigou, que me intriga.

Os fios das tramas desses dois livros poderiam ter sido seguidos e desenvolvidos de outras maneiras e que levassem, ou não, a outros caminhos que não o fim tradicional de contos de fadas. Mas, ao menos outras possibilidades teriam sido experimentadas. Por que esses finais não são percebidos? Por que outros finais não seriam igualmente felizes?

O que comecei a pensar foi: por que não fazer diferente? Não quero com esse texto questionar apenas os finais dos livros, as razões dos autores para escrevê-los da maneira que foram escritos ou acusar ninguém de plágio. Quero muito, isso sim, é questionar o que está por trás de tamanha coincidência. O que nos faz perceber como final adequado para qualquer história desde ‘Branca de Neve’ a ‘Harry Potter’, desde ‘Cinquenta Tons de Cinza’ até ‘Jogos Vorazes’. O mesmo final de família feliz, retratada rotineiramente em tantas representações midiáticas como sendo a única felicidade. O que nos faz entender que esse seria o melhor final possível?

A conclusão que cheguei é que esses finais vem da nossa própria incapacidade de enxergar a felicidade fora do modelo que nos é proposto na nossa sociedade. Na nossa incapacidade de perceber e entender que prazer sexual pode existir sem culpa. A incapacidade de desvincular o prazer sexual do amor e da maternidade como recompensa ou fardo. A falta de entendimento que o amor romântico não é o único tipo, nem o ápice da vida e certamente não é, necessariamente,  o momento maior de felicidade da vida da maioria  das pessoas no mundo.

Não quero questionar ou invalidar a felicidade que há nessas escolhas. Não é minha intenção desqualificar a Katniss ou a sua força, se ela é mais ou menos feminista por sua escolha. A minha questão é por que uma outra escolha, um outro final, que não a plenitude do amor romântico representado pela família tradicional, não seja entendida como final feliz possível? Por que uma outra escolha não traria satisfação e plenitude, realização e felicidade?

Acho que nos falta o entendimento que o prazer sexual é algo bom em essência, que pode ser vivido sem culpa, de várias maneiras e mesmo na ausência do amor romântico. Que o prazer não é nem melhor, nem pior com ou sem a presença do amor, é apenas diferente. E que é possível haver relacionamentos em que haja prazer sem amor e que compreendam mais do que um casal, seja esse casal heterossexual ou não. Que o prazer, seja ele sexual ou não, é um sentimento valioso pelo qual se deve lutar. Que a experiencia sexual é valiosa, não importa a maneira que escolhamos vivê-la. E que, enquanto sociedade, quando compreendermos isso, as cenas finais dos livros vão ser mais diversas e bem menos previsíveis.