Texto de Tâmara Freire.
A mãe escolhe cuidadosamente os alimentos dispostos no display do restaurante self-service . Macarrão: porque ele gosta. Cenoura: porque é saudável e ele aceita. Batata frita: porque ele gosta. Feijão: porque é saudável e ele aceita. Pede uma cadeira infantil ao garçom. Acomoda confortavelmente o petiz. Primeira colherada: ele come. Segunda colherada: ele põe na boca e cospe. Terceira colherada: ele rejeita. Na quarta colherada ele já está gritando a plenos pulmões. Chorando descontroladamente para sair da cadeira, para que lhe tirem os sapatos, para que lhe deixem atirar a comida do prato aos quatro cantos.
A mãe faz seu prato, senta-se e, conforme reza a própria cartilha, se mantém impassível esperando que o ataque de pirraça cesse. Mas os olhares… Ah, que bom seria o mundo sem esse tipo de olhares. Os olhares são muitos, de todas as mesas, de todos os cantos do mundo, é o que parece. Acusadores, esquivos, acompanhados de comentários entre os dentes que somente o alvo dos próprios é capaz de notar. A mãe se envergonha, rasga a cartilha em pedacinhos e sai do restaurante, tão rápido quanto pode. Correria se não fosse preciso pagar a comanda. Frustrada pela má conduta do filho, frustrada pela própria fraqueza, frustrada por existir enquanto figura materna imperfeita, neste mundo em que olhares parecem dizer que não se pode “errar” em público. Jamais.
São os terrible two, dizem os entendidos. Uma fase que acontece em período próximo aos dois anos em que uma nave alienígena parece abduzir seu bebê fofo e bonzinho e colocar um monstro birrento e destruidor no lugar – ou pegar sua criança fofa e birrentinha e trocar por uma mil vezes mais birrenta, como é o caso nesta residência. Este é o relato mais pessoal do mundo a respeito deste fenômeno, portanto, não achei de bom tom que eu apresentasse links e pesquisas para validar o que estou falando como verdade. Não, pelo contrário. Eu acredito que vivo um certo “complicated two” na minha casa, mas pode ser que nada disso se passe na sua. Ou pode ser que se passe, mas que você não acredite.
Há quem explique que a tormenta se justifica por se tratar de um momento da vida do bebê em que ele deixa de estar emocionalmente fundido à mãe e passa a se reconhecer como indivíduo uno. Há quem defenda que se trata na verdade, verdadeira, de uma questão mais de linguagem: os pequenos estão evoluindo, se complexando, mas ainda não sabem verbalizar os sentimentos novos que chegam. Eu acredito em tudo e no que mais alguém quiser me explicar. Só não chamo mais de “terrible two” desde que uma amiga entendida dessas coisas de palavra me alertou que, com elas, é sempre bom tomar cuidado: chama-se tanto a criança de terrível que qual outra alternativa de ser ela terá senão corresponder? Complicados dois, portanto, foi o termo que escolhi. Complicados apenas. Nada terríveis, nada tenebrosos. Apenas inspiradores de maiores cuidados.

Acontece que os momentos complicados são também os preferidos dos olhares esquivos. Eles nunca faltam no momento complicado do parto (“você vai tentar parto normal? Deus me livre, isso é coisa de bicho!”), no momento complicado da amamentação (“Desmama logo essa criança. Já está até andando!”), no momento complicado de enviar a criança para creche (“porque você não tenta ficar em casa pra cuidar dele?”) e no momento complicado que a criança se debate no chão da padaria, tomada por toda a autoridade para a anarquia que os complicados dois a conferem. Porque se existe uma criança que chora é evidente que os pais é que não sabem educar, não é? Os pais? Por que, então, a frase criada especialmente para esses momentos de indignação coletiva é “onde está a mãe dessa criança?”
Esta é, na verdade, mais uma provocação do que uma teoria, mas não se é possível negar que dos julgamentos que sofrem as mulheres, as mães os sofrem duas vezes. Porque não devemos somente nos manter respeitáveis, como é nossa obrigação criar seres humanos que também assim o sejam. A este ponto, parece-me que fiz um vai-e-vem de assuntos que podem parecer algo desconexos para alguns, então, me explico: a história do começo do post, absolutamente verídica, retrata um dos muitos momentos em que me senti diminuída como mãe. Julgada. Deslegitimada. Envergonhada por ser… a mãe que sou. Aquela que não sabe controlar o próprio filho. Esse menino fofo, dócil e espertíssimo que pode padecer apenas de… complicated two e não de “mãe irremediavelmente incompetente”.
Este post acaba por ser, antes de mais nada, um desabafo. Porque as mães, ainda que feministas, também sofrem com os olhares alheios, que parecem vir de todos os cantos do mundo, apenas para apontar o que fazemos de errado, para questionar a cartilha que estamos escrevendo diariamente, jamais para contribuir. A sorte é que não somos poucas. E, em um grupo de discussão, podemos descobrir que não estamos sozinhas 😉
Após trocar vivências no Femmaterna, em casa, temos adentrado dois terrenos para conseguir passar pelos complicated two sem maiores vítimas. Quando menino se descontrola, eu pego no colo, aperto bem forte, digo que “já passou” uma porção de vezes, até que a calmaria novamente se instale. Tem dado certo. E, desde que me indicaram o método montessoriano, tenho também me planejado para fazer as adaptações necessárias. Já para os olhares julgadores ainda não foi encontrada qualquer solução, mas dá para conseguir acolhimento, o que, na prática, dá quase na mesma.
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Tâmara Freire é mãe do Miguel Luiz de 1 ano e 10 meses.
O FemMaterna é um grupo de discussão sobre maternidade com uma proposta feminista. Se quiser participar, basta pedir solicitação na página do grupo. Participe também no facebook.