Os meninos esquecidos que não tem nome

Texto de Ana Rita Dutra.

Eles parecem não ter nome. São os molequinhos, os sujinhos, os suspeitos. Perambulam pelas ruas, gritam com as pessoas, até batem a sua carteira. Estão invisivelmente nas escadarias das igrejas, nas marquises dos prédios, deitados no cordão da calçada. Qual o nome deles? Eles não tem nome. As vezes pergunto para determinada criança? Fofuxo, qual teu nome? A resposta é: Chonico! Eu insisto perguntando qual o nome, ele não sabe, é assim que é chamado, eu pergunto para o responsável: ei, qual o nome do seu  filho? É Chonico!

Eu insisto na necessidade de saber o nome e o responsável tem que se dirigir até onde mora para procurar a certidão de nascimento, pois também não sabe o nome. Chonico também não tem um rosto, na verdade Chonico nem é percebido, é como se não tivesse corpo. Ao encontrá-lo sentado em um praça, na saída de um supermercado, você pode nem perceber a presença dele.  São pequenos, rápidos, quietos e barulhentos.

Chonico evade da escola, entra e sai de diversos programas de assistência, nada dá jeito nesse menino. Quase todo dia pode-se encontrá-lo nos sinais perto da escola, a noite é sempre recolhido e trazido de volta. Ele consome muitas bebidas alcoólicas, fuma muito e tem 13 anos.  Treze anos de vida e muita experiência. Boa parte das pessoas que atendem Chonico já o colocam como o “garoto problema”, o “menino que não tem mais jeito”, e como um menino de 13 anos não tem mais jeito? Quando tentamos abraçar Chonico seu corpinho se fecha, os braços endurecem e não se abrem, a cabeça fica baixa e o olhar busca o chão.

Foto de Felipe Bastos no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
Foto de Felipe Bastos no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Esse moleque definitivamente vai ser assaltante, provavelmente estuprador, o pai é presidiário, nossos filhos não devem ser amigos dele. Na saída de mais um dia de trabalho encontro Chonico sentado na rua sem asfalto, em uma terra alisada, jogando bolinha de gude, seus dedos pequenos seguem a bolinha, sua concentração é total naquela brincadeira, Chonico ri, brinca, respira, em um raro momento de tranquilidade. Quem cuida de Chonico? Seu pai esta preso, onde esta sua mãe? Porque ela não cuida deste menino?

A Senhora Maria sai para fazer faxina às 6:30 da manhã e chega em casa todo dia em torno das 20 horas e encontra 3 filhos muito pequenos para cuidar, além de Chonico que não esta em casa. Maria acredita que Chonico não é inteligente, que os 4 filhos não são inteligentes pois a mãe é burra, não haveria inteligencia para herdar. Apesar da desvalorização de suas potencialidades e das potencialidades de Chonico, Maria deseja um futuro diferente para seu filho, mas não sabe como atingir este objetivo. Como pode ser diferente? Você sabe?

Assim como esse menino, diversos outros meninos e meninas seguem perambulando pelas ruas. Perambulam pelas ruas com seus sonhos, suas expectativas, suas dores. Muitos sonham em ser ricos, e ser rico é pagar um churrasco para os amigos todo final de semana, outros querem ser jogador de futebol pra poder comprar comida para o mês inteiro, alguns querem ser MCs do funk para poderem beber, andar de carro importado, roupa bonita e esquecer do mundo.

Em certa tarde, Chonico ficou olhando maravilhado um esmalte, ele quis colorir uma unha, mas ele não podia sequer pegar o esmalte, pois era homem,  escondido ele tentou brincar com as cores passando escondido aquele lilás tão bonito em uma unha, antes de esconder a mão na bermuda, já que ninguém podia ver. Chonico também costuma verter lágrimas invisíveis, lágrimas que quando aparecem são logo sufocadas, pois ser um garoto lhê impede de chorar, de abraçar, de se mostrar.

Maria e Chonico são reais, apesar de nomes e apelidos fictícios. São dores reais, cansaços reais, sonhos reais e eu gostaria muito que nosso feminismo pudesse se aproximar cada vez mais de Maria e Chonico, a luta de Maria e Chonico também é nossa. Quando falamos que nossa luta é por todxs, devemos pensar na diversidade real desse todxs.

Eu não vejo sentido em um feminismo, de uma militância que não faça real diferença e intervenção na realidade. Racismos, machismos, violências estão constantemente presentes no dia a dia de Chonico, o resultado das desigualdades e discriminações recaem sobre seu corpo invisível, uma violência pesada, dias e mais dias sufocantes se arrastam por 13 longos anos de vida. O presidente da Associação de Moradores de uma comunidade onde desenvolvo algumas atividades, costuma dizer:  “é somos invisíveis… não é que “eles” não nos enxergam, “eles” não querem nos ver! O que pra mim é bem pior…”

Será que no fundo não queremos ver Chonico? Seguiremos realmente em luta até que Maria e Chonico ou Pamela, Lady e Beatriz sejam livres? Nossos feminismos devem atentar para a realidade das crianças em situação de extrema vulnerabilidade. Para além da realidade do menino que cito no texto, existem outras realidades, outras formas de experimentar e vivenciar a infância nos contextos de vulnerabilidade, que  relacionam-se de forma diferente com diversas discriminações e violações.   O menino Chonico possui um super poder na nossa militância: o de tornar-se ou ser tornado invisível.

Ahh querido Chonico, que sejas livre para crescer, lutar, sorrir, trabalhar e amar. Que você possa ser o que quiser, inclusive não ser o Chonico. Que você possa contar conosco nessa caminhada.