Texto de Bárbara Araújo.
A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras. O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.
(trecho de abertura do conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis)
Muita polêmica e muitos aplausos têm rondado o último filme de Quentin Tarantino, Django Livre. Spike Lee achou um desrespeito com seus antepassados escravos, a Lola achou chato e muitas de nós, blogueiras, achamos legal pra caramba. Embora eu não seja particularmente fã do trabalho do Tarantino, costumo gostar dos filmes. Mas fui assistir Django com a pulga atrás da orelha ao imaginar de que forma um diretor conhecido por glamurizar e esteticizar a violência trataria a escravidão, um tema delicadíssimo que envolve violência física e simbólica em níveis inimagináveis.
(Uma rápida observação sobre “níveis de violência” e a possibilidade de medi-los: determinada pesquisa de historiadores quantitativos averiguou que escravos norte-americanos eram açoitados uma média de 0,7 vezes ao ano.* Um dado que pode aparentar certa deslegitimação da violência da escravidão (“Poxa, só 0,7? Nem é tanto!”) é desorientador porque 1) a violência simbólica que carrega ter levado uma chibata nas costas pelo menos uma vez em toda a vida, ou mesmo apenas observar um dos seus sofrendo o açoite, é algo absolutamente significativo e 2) é literalmente impossível açoitar alguém 0,7 vezes; os dados estatísticos nem sempre nos dão uma dimensão de realidade.)

Django mostra, como era de se imaginar, as crueldades da escravidão norte-americana com detalhes e todo o sangue que Tarantino sabe como – e adora – exibir. Mas ao contrário do que indicam as incessantes comparações com Bastardos Inglórios, achei a tônica bem diferente de qualquer outro filme do diretor que já tenha visto. A violência em Django não é banal. Ela é não apenas ultrajante, mas insuportável, dando um nó no peito da audiência. Não são miolos voando pelos cantos na maior tranqüilidade como acontece em Kill Bill; é um caçador de recompensas, capaz de matar um homem na frente se seu próprio filho, que fica totalmente atormentado ao se lembrar de um bando de cachorros soltos pelo senhor de escravos pra matar e comer um ser humano.
Em alguns momentos do filme, Tarantino traz à cena as máscaras e coleiras de ferro usadas pra controlar e punir os escravos. Esses aparelhos são símbolos recorrentes nas obras artísticas que falam de escravidão. De todo o horror retratado no premiado livro da escritora negra norte-americana Toni Morrison, me marcou muito o trecho em que um ex-escravo revela à companheira que lhe puseram um “freio” no rosto:
Ele queria me contar, ela pensou. Ele quer que eu pergunte para ele como foi para ele – pergunte como a língua fica machucada apertada pelo ferro, como a vontade de cuspir é tamanha que dá vontade de gritar. Ela já sabia disso, tinha visto isso muitas vezes (…). Homens, meninos, menininhas, mulheres. A loucura que congestionava o olho no momento em que os lábios eram arregaçados para trás. Dias depois, tiravam, esfregavam gordura de ganso nos cantos da boca, mas nada curava a língua nem tirava a loucura dos olhos.
(trecho de “Amada”, de Toni Morrison)

A companheira e interlocutora percebe a vontade do ex-escravo de falar sobre a violência, mas ela não deseja ouvir, não suporta ouvir. E mesmo assim a memória da violência emerge no seu pensamento. E Toni Morrison a explicita em palavras detalhadas. Por que será que é preciso contar?
O trecho que coloquei como abertura do texto é de um belíssimo conto do nosso próprio escritor mulato (que durante anos foi apresentado pela história da literatura como branco), Machado de Assis. Machado publicou Pai contra Mãe em 1906, 18 anos depois da abolição da escravidão no Brasil, um país orgulhoso de seus novos valores republicanos. Machado escolheu falar sobre escravidão no Rio de Janeiro de 1906 com riqueza de detalhes, explicitando suas contradições. A história apresenta um casal de pobres diabos com os irônicos nomes de Clara e Cândido Neves, o Candinho, homem que tinha por ofício pegar escravos fugidos (lembram do Django, caçador de recompensas?) como única fonte de renda que conseguia manter. A grande sacada do Machado é o impasse: Candinho captura uma escrava grávida fugida pois precisa da recompensa em dinheiro pra não ter que abrir mão de seu próprio filho. O filho preto ou filho branco e pobre? Pra conhecer o final, leiam aqui.
Longe de querer comparar Tarantino e Machado de Assis (por favor, não me acusem disso!), fazer o conto e o filme dialogarem me pareceu inevitável. As duas obras mostram, cada uma à sua maneira, as nuances da escravidão: enquanto Django tem o negro complacente e o branco anti-escravista, Pai contra Mãe tem o jovem pobretão que compactua com o sistema pela garantia da própria sobrevivência. Mas o principal elemento em comum entre os dois, na minha humilde opinião, é fazer emergir a violência da escravidão, uma crueldade tão animalesca e desumana (e como nós, humanos, temos sido capazes de ser desumanos ao longo da história!) num momento em que a sociedade suspeita que venceu o racismo e superou a escravidão.

Na sociedade brasileira pós-abolição, onde o orgulho da ordem e do progresso silenciava as chibatas que ainda se impunham sobre as costas de marinheiros negros, Machado de Assis lembra a máscara de folha-de-flandres e, com ela, tudo que aquela sociedade havia sido capaz de fazer, aquela mesma sociedade. Machado esfregou na cara do Brasil republicano que a mentalidade e a prática senhorial escravista estavam violentamente vivas.
Eu acho que Django dá um lembrete parecido. Por mais que alguns digam que o personagem Schultz tem o papel de isentar os brancos da culpa da escravidão, eu senti que a narrativa do filme envolveu todo mundo na responsabilidade por aquela violência. Quando Schultz reclama com Django por estar sendo excessivamente agressivo com os outros escravos, por conta da farsa que eles precisavam promover, ele responde: “You wanted me to get dirty”. E foi assim que eu me senti depois de assistir o filme: suja. Suja de sangue. E não por ser branca (se é pra usar classificações raciais, sou parda), mas por ser humana. A figura do traficante negro de escravos, o escravo mordomo que pune os outros e o homem pobre que prende a escrava grávida estão aí pra relativizar as coisas: a crueldade da escravidão e do racismo não é culpa nem exclusividade de quem tem pele branca. A crueldade está no fato de alguns seres humanos terem hierarquizado, violentado e negado a subjetividade a outros seres humanos. A sujeira foi humana. E ainda é: o problema persiste. E essa constatação é de revirar o estômago.
Mas é preciso constatar, revirar estômago e horrorizar: precisamos falar, ouvir e ver essas violências, às vezes com uma riqueza de detalhes incômoda, pra que ela permaneça sendo ultrajante e revoltante, pra que a gente persista lutando contra isso.
[+] Intocáveis, Spike Lee e o racismo dos estereótipos
*Bibliografia: PORTELLI, Alessandro. “A filosofia e os fatos”.