Texto de Renata Lima.
Simone Changeux, filha de um capitão da Marinha francesa e de uma pianista, nasceu na França, em dezembro de 1921. Viveu uma juventude cheia de aventuras, permitida, obviamente, pelo sua posição na sociedade francesa – ela não era pobre, pode estudar, e escrever. Escreveu e publicou vários livros, e entrevistou várias personalidades, mas ficou somente mundialmente conhecida quando, depois de vencer um premio literário, viajou para o Congo, então colônia francesa na África, e lá, conheceu o aristocrata russo, nascido na Pérsia, Vsevolod Goloubinoff, a quem entrevistou.

Anne e Vsevolod se apaixonaram, ele, 18 anos mais velho, exilado pela Revolução Russa, e se casaram.
De volta para a França depois da Independência do Congo, Vsevolod (que adotou o nome de Serge) não obteve a permissão para trabalhar, e as publicações de Simone (Anne) foram o sustento do casal, que vivia em um quarto, na casa da mãe de Anne, na cidade de Versalhes, proximidades de Paris, onde há o palácio de mesmo nome, joia da coroa de Luiz XIV.

Anne se interessava pela pesquisa histórica, assim como Serge, que era também geólogo e químico. Assim, em algum momento, decidiram escrever uma novela, ambientada na França do século XVII.
Lançada originariamente na Alemanha, em 1956, o primeiro livro, sob o nome de Anne Golon (contração do sobrenome de Serge, Goloubinoff), foi publicada na França um ano depois, em dois volumes: Angélica, a Marquesa dos Anjos, e Angélica, a caminho de Versalhes. No entanto, para os demais volumes, a agência disse a Anne que eles deveriam usar um nome de homem, dizendo que assim seria possível fazer o livro “parecer mais sério”, e propuseram usar o nome de Serge. Aparentemente, Anne teria concordado, mas Serge se negou, dizendo que o trabalho era essencialmente de Anne, sendo que chegaram a um meio-termo, sendo os livros publicados sob o nome de “Anne e Serge Golon” (as edições da Nova Cultural vem com esses nomes, e com uma pequena história do casal, em uma das orelhas dos livros). Curiosamente, nas edições em inglês, e sem comunicação ou autorização dos autores, o nome do escritor foi alterado para “Sergeanne Golon”. Os livros (o primeiro volume original, dividido em 2 volumes) alcançaram enorme sucesso em 1958, nos Estados Unidos.
Anne e Serge continuaram escrevendo e pesquisando, e estavam no Canadá, em 1972, em Quebec, quando Serge morreu, subitamente, antes de completar 70 anos.
Anne, apesar de devastada, continuou escrevendo, e em 1985, completou a saga.
Em 1995, Anne, que criou os quatro filhos e escreveu em estado de relativa pobreza, apesar do sucesso dos livros, descobriu que estava sendo lesada pela sua editora, o famoso grupo Hachette, e entrou na justiça, em uma batalha judicial pelos direitos da obra e pagamentos de royalties. Por esse motivo, os leitores de língua inglesa até hoje não tem a obra completa oficialmente lançada.
Em 2009, Anne e seus filhos, herdeiros de Serge, venceram a disputa. Anne está viva, com 92 anos, e lúcida. Está, inclusive, revisando a obra, que foi alterada em várias traduções, sem seu consentimento.
No Brasil, depois das edições das décadas de 80, do Círculo do Livro, e da edição de banca de revista da Nova Cultural, não há novas edições da obra, infelizmente. É possível comprar os livros usados, em sebos e pela internet.
Espero, ansiosa, pelas novas edições, porque, momento confissão: os meus estão com mais de 20 anos, levei 10 anos garimpando em sebos de todos os lugares do Brasil por onde passei, e só assim completei minha coleção, que está gasta, e é ciumentamente guardada!
Falando agora, um pouquinho só, sobre a obra, em si:
Angélica. Nome de uma erva dos pântanos do Poitou, região do centro-oeste da França, com supostas propriedades afrodisíacas, se tornou a heroína de uma geração, e foi eternizada nas telas, na pele da atriz francesa Michele Mercier.

As histórias da vida de Angélica de Sancé de Morens, nascida em Monteloup, no Poitou, no século XVII, somam 14 volumes, que no Brasil, foram lançados pelo Círculo do Livro, em capa dura e papel de qualidade, e que também foram lançados pela Nova Cultural, em 1989, dividida em 26 volumes, com papel de jornal, e capas que remetem somente às aventuras românticas de Angélica.
A história de Angélica passa pela França – Monteloup, Toulouse, Paris, Marselha, La Rochelle – e chega ao Canadá, em Quebec. Nesse intervalo, que cobre aproximadamente 30 anos, a heroína passa ainda pelo Mediterrâneo, por Creta e Malta, Argélia e Marrocos.
Os livros, além da pesquisa histórica sobre os lugares e os personagens reais, ainda nos insere no pensamento da época. Luiz XIV, o rei Sol, e o Iluminismo nascente. As teorias econômicas e filosóficas, os pensadores da época, os grandes nomes e os grandes feitos. Tudo ganha vida, na obra de Anne e Serge Golon.
Angélica, a personagem, é uma mulher que nasceu na baixa nobreza, criada de pés descalços, no conforto de um castelo decadente, andando com os camponeses, sem distinções de classe, apesar de consciente do tratamento deferente que recebia, sendo filha de um barão da região.
Adolescente, seu pai entra em um comércio de mulas (para desgosto dos parentes da alta nobreza, que faziam chacota – o comércio não era atividade nobre, somente a guerra o era) e Angélica e as irmãs são mandadas para um colégio de freiras, em Poitiers, para serem educadas como jovens nobres e se prepararem para o destino comum: casamento.
Angélica sabe disso, e questiona, mesmo sabendo da inevitabilidade de seu destino.
Por sorte (é um romance, né, gente) ela é “vendida em casamento” a um nobre da região sul da França, da província de Toulouse, o Conde de Peyrac, Joffrey, por quem se apaixona. Doze anos mais velho, ele é um ancião para a adolescente de 18 anos, e ainda é coxo (manca de uma perna), com uma enorme cicatriz no rosto, que o desfigura, e a fama de bruxo e alquimista, mas depois de ser tratada como uma adulta, e mais ainda, como um ser humano inteligente e capaz, pelo marido, Angélica se rende a um amor que é épico… (suspiros)
O Conde Joffrey de Peyrac é um nobre que questiona seu papel como mero coadjuvante nas guerras. Questiona as próprias guerras reais, uma vez que, ainda bebe, foi agredido e ferido por soldados do rei de então, nas revoltas protestantes. Questiona e usa os conhecimentos que adquiriu sobre metais para fazer a própria fortuna, o que, obviamente, o torna menos dependente dos reis e dos bispos, e assim, uma ameaça.
Joffrey é perseguido, julgado em um arremedo de Inquisição, e sua esposa, aos vinte anos, grávida do segundo filho, o vê sendo, supostamente, queimado vivo em praça pública, para o deleite da multidão.
Angélica se vê renegada pelos antigos bajuladores da época de esplendor, e pela própria família, que teme o mesmo destino. Para sobreviver, vai viver nas ruas de Paris, entre mendigos e assassinos, onde reencontra um antigo servo de seu pai, que se tornou um grande nome entre os desalojados do “Pátio dos Milagres”, local nas antigas muralhas de Paris onde a população miserável se escondia e sobrevivia, à custa dos pequenos milagres – falsos deficientes, que simulavam doenças para angariar esmolas e cometer pequenos furtos contra a nobreza e a crescente burguesia. No “Pátio dos Milagres”, a Condessa de Peyrac se torna “A Marquesa dos Anjos”, nome pelo qual ficará conhecida na série.
Posteriormente, à custa de trabalho, esforço, chantagens, tramoias e muita ousadia e inteligência, nossa heroína vai recuperar seu lugar na corte, se casa com um Marques, até mesmo será cotada para ocupar o cargo de amante real.
Mas ela recusa, e de novo, se vê lançada no ostracismo. Foge para o Mediterrâneo, aonde vai em busca da verdade sobre o que aconteceu com o primeiro marido, Joffrey, supostamente queimado vivo, mas na verdade, perdoado na última hora pelo rei, que teria conseguido fugir e virado pirata.
Angélica sofre todo tipo de violência. É estuprada duas vezes, no decorrer da história. Tem uma filha, fruto de um desses estupros. Perde um filho, assassinado, na mesma noite em que é estuprada por um batalhão de soldados.
Após tal fato, ela se revolta contra o rei e pega em armas, liderando a província do Poitou contra o rei Luiz XIV. Durante tal revolta, as reflexões de Angélica sobre a guerra, sobre a intolerância religiosa, sobre o papel da mulher, são profundas e angustiantes.
E após ser derrotada, ver seus amigos presos ou mortos, ela consegue, ainda, se disfarçar, e sobreviver com a filha, a quem aprende a amar (a filha do estupro, a filha que ela tentou matar no ventre, e tenta matar ao nascer, abandonando a criança em um convento), como criada de uma família hugenote (protestante), na cidade de La Rochele.
De lá, ela vai para o Canadá…
Bem, eu poderia contar mais, mas vai ficar enorme e não vai chegar nem perto do que é a saga, e ainda vou estragar a surpresa para quem não leu os livros.
Filosofia, religião, história, feminismo.
Sim, é uma história cheia de reviravoltas. E, sim, foi vendida, contra a vontade da autora, como um romance açucarado (não que eu tenha nada contra, muito antes pelo contrário, você pode ver aqui mesmo no Blogueiras Feministas, no meu post “Água com açúcar, sim, por favor!”) e não como o epopéia histórica que na verdade é.
Em português, mesmo com toda a parafernália de internet, não encontrei quase nenhum texto sobre Anne ou sobre a obra mais famosa. Mas em inglês, língua na qual a saga sequer foi inteiramente traduzida, devido à batalha judicial pelos direitos autorais, encontramos vários textos, entre eles, um que diz que “The Angélique series is to historical fiction what the Lord of the Rings is to fantasy – the original, epic work that set the standard and still does.” (A série Angélica é para a ficção histórica o que O Senhor dos Anéis é para a literatura de fantasia: o original, o trabalho épico que estabeleceu o padrão, e ainda estabelece).
Se é exagero, não sei, mas posso afirmar que, como uma adolescente que adorava história, e tinha acesso a enciclopédias e livros que a maioria dos adolescentes não tinha, no ínicio da década de 90, o trabalho de pesquisa histórica é fascinante e enriquecedor.
Com Angélica e sua trajetória pelo mundo e pela vida, eu aprendi mais sobre o mercantilismo e a Reforma Protestante que com qualquer livro de história ou professor de ensino médio. Me despertou a curiosidade sobre outros países, sobre filosofia e arte, sobre as nações indígenas no Canadá, e eu li O Guarani com outros olhos depois de ler as aventuras de Angélica.
Não busco leituras por serem “feministas” ou terem personagens “feministas” – e aos treze anos, quando li “Os amores de Angélica”, eu nem sabia o que era feminismo.
Mas quis falar aqui sobre essa obra, não só pela heroína, nem só pela história da autora Anne Golon, mas porque, se houver um teste Bedchen sobre os livros, A Marquesa dos Anjos passaria com louvor.
Existem vários personagens femininos, fortes, com nomes. Elas conversam entre si. E não falam sobre homens o tempo todo!
Como disse um artigo em um site, em ingles, que busca divulgar a autora e sua obra:
As capas enganosas, frequentemente retratando uma Angélica escassamente vestida em absurdas roupas fora do período histórico descrito, a classificação enganosa dos livros como romance, ou até eróticos, e os filmes, que infelizmente, enquanto apresentavam Angélica a milhões, a colocaram como uma sombra rasa e egoísta de seu verdadeiro caráter, contribuíram para que os livros fossem vistos como literatura inferior, desmerecendo o incrível trabalho de pesquisa e ambientação histórica.

Uma tese de mestrado escrita na Universidade de Alberta, no Canadá (onde Anne é reconhecida até hoje como uma das maiores estudiosas das nações indígenas – iroqueses) demonstrou que os livros de Anne não possuem nenhuma das características do “romance” típico. Tal romance típico apresenta uma heroína que é usualmente vista através do reflexo do personagem masculino principal, e que é incompleta sem ele – enquanto Angélica na verdade domina todos os livros com suas aventuras, e todos os outros personagens são coadjuvantes, incluindo sua alma-gêmea, Joffrey, que aparece em menos de 10% das páginas e está totalmente ausente de dez dos volumes, e aparece apenas de passagem em outros cinco.
Então, em nome de Anne Golon, e de Angélica, A Marquesa dos Anjos, eu convido vocês a conhecerem essa fantástica história.
Aproveitem!
Site dedicado à autora e sua obra – em inglês
Entrevista com Anne Golon, em Versalhes
As capas dos livros e dos romances
Blog em inglês, dedicado a Anne Golon e sua obra
Um dos poucos blogs em português, que fala sobre a obra
Antologia sobre Anne e Serge – em francês
Antologia sobre Anne e Serge – em Inglês
Lista dos livros, com os títulos originais, em francês:
1957 – Angélique Marquise des Anges
1958 – Angélique, le Chemin de Versailles
1959 – Angélique et le Roy
1960 – Indomptable Angélique
1961 – Angélique se révolte
1961 – Angélique et son Amour
1964 – Angélique et le Nouveau Monde
1966 – La Tentation d’Angélique
1972 – Angélique et la Démone
1976 – Angélique et le Complot des Ombres
1980 – Angélique à Québec
1984 – Angélique, la Route de l’Espoir
1985 – La Victoire d’Angélique
Veja mais Angélica na versão Biscate: Angélica, Marquesa dos Anjos