Texto de Ludmila Pizarro e Liliane Gusmão.
“Fico feliz em ter mantido vivas minhas ambições pessoais, mesmo quando teria sido mais fácil me tornar a senhora de um lar amoroso com nenhum pensamento além dos filhos” .
“Nunca se renda, nunca explique, nem se desculpe — faça o que tem que ser feito e deixem que eles uivem” .
A dedicação integral aos filhos é considerada atualmente uma opção para as mães. Ou seja, não existe mais a obrigatoriedade das mulheres se dedicarem exclusivamente ao marido após o casamento, e aos filhos após a maternidade. Parece muito óbvio? Então vamos voltar um pouquinho na história.

Foto de Cyril Jessop, copyright expirado. Disponível na Wikimedia Commons.
O voto feminino no Brasil completou 80 anos em 2012. Tendo em vista que o sistema eleitoral brasileiro existe há quase 200 anos, temos que concordar que mulher votando no Brasil é coisa recente. Da mesma forma, a obrigação de direcionar 100% de sua atenção aos filhos e afazeres domésticos era, até pouco tempo, uma realidade para a grande maioria das mulheres, no Brasil e no mundo. Poucas conseguiam escapar desse roteiro pré-determinado de vida. E muito poucas, das que conseguiram, fizeram tanto pelas demais mulheres de sua época, do que Nellie McClung.
Sem nenhuma das maravilhas dos utensílios domésticos modernos, ser mãe e dona de casa numa época em que mulheres eram propriedade dos homens, devia ser muito duro. Tanto não era fácil, que mulheres talentosas e lutadoras como Nellie se recusaram a viver dessa maneira.
Se hoje não pedimos permissão a ninguém para ir e vir, temos imóveis, carros, bens próprios, enquanto o maridão tem os dele. Podemos votar e nos candidatar, ou até sermos consideradas pessoas capazes, temos que, de certa forma, agradecer a essa carismática e bem humorada sufragista. Mesmo sendo mãe de cinco filhos, moradora de um distrito rural no norte do Canadá e nascida em 1873, Nellie conseguiu mudar a política de seu país e melhorar efetivamente a vida de diversas outras mulheres com isso. E ainda sobrou um tempinho para escrever alguns livros que se tornaram best-sellers em sua época.
Nascida em Ontário, com o nome de Nellie Letitia Mooney, aprendeu a ler aos nove anos e aos 16 já era professora. Casou-se aos 23 anos com o filho de uma amiga que havia conhecido na igreja, o farmacêutico Robert Wesley McClung. Como vivia em uma região rural, logo distinguiu o primeiro inimigo que combateria: o abuso de álcool. Aqui é necessário contextualizar como o alcoolismo configurava uma doença social de proporções gigantescas. Bebida alcoólica era mais barato que leite e a sociedade patriarcal muito mais centrada no homem do que hoje. O dito popular em briga de marido e mulher ninguém mete a colher — até hoje combatido pelo movimento feminista — era uma regra social. O homem em sua casa fazia e dispunha de sua esposa como bem entendia e ninguém tinha direito de se intrometer.
O pior da situação, conforme observava Nellie, era o controle financeiro pelo homem. Parece incrível, mas à época, mulheres casadas não tinham direito a ter seus próprios bens, tudo era propriedade do marido. Sendo assim, a mulher que tentasse sair da situação de abuso e agressões teria de fazê-lo abandonado tudo, saindo de casa com uma mão na frente e outra atrás.
Por isso, Nellie foi uma das principais defensoras (e estava viva para ver essa conquista) do divórcio igualitário, onde os bens eram divididos pelo casal e o patrimônio da família da esposa poderia ser mantido por ela após o casamento. Na luta pelo divórcio igualitário, Nellie cunhou uma de suas frases mais conhecidas, onde mostra toda sua espirituosa inteligência: Por que lápis equipados com borrachas, se não para corrigir erros?

A luta contra o abuso de bebidas alcoólicas mostrou à escritora que sem participação política não seria possível dar visibilidade e voz às mulheres. Assim, aliou-se ao movimento sufragista canadense. Através de sua influência –– como autora de diversos artigos e excelente oradora –– Nellie e suas companheiras conseguiram aprovar o voto feminino em seu estado, Manitoba, em janeiro de 1916. Para se ter uma ideia, o último estado canadense a alcançar esse estágio foi Quebec, em 1940. Sim, é isso mesmo, 24 anos depois.
No processo de aprovação do voto feminino, evidentemente, nem tudo foram flores. Entre os principais opositores de Nellie McClung estava o premier de Manitoba, Rodmand Roblin. Autor de frases como “Eu não quero uma hiena de anáguas falando comigo, quero uma criatura agradável, suave, para trazer meus chinelos”. Roblin pagou um alto preço por tentar competir com Nellie no quesito sarcasmo.
Em 1914, as sufragistas fizeram uma solicitação para aprovação do voto feminino que foi rechaçada por Roblin. Diante da recusa, juntaram-se e encenaram a peça ‘Parlamento das Mulheres’. O enredo trazia um grupo de homens solicitando ao ‘parlamento feminino’ direito ao voto. Na peça, o discurso do premier é praticamente repetido, porém a palavra ‘mulher’ é substituída por ‘homem’. Com grande eloquência e uma imitação perfeita dos trejeitos de Roblin, Nellie desnuda o preconceito com frases como: “Se ‘homens’ começarem a votar, famílias vão desestruturar- se e o divorcio aumentar” ou “Homens bons não querem votar“.

Mostrando a fraqueza e o ridículo dos argumentos pelo premier além de humilha-lo politicamente (assista aqui, uma produção que encena esse episódio histórico da política canadense e mundial), como a imprensa de Manitoba descreveria nos dias seguintes à apresentação. Roblin, enfraquecido, acabou afastado do cargo em 1915.
Outro episódio marcante na biografia da ativista Nellie McClung ocorreu em 1928, quando a Suprema Corte do Canadá decidiu que o termo “pessoa” presente na Constituição, e que se referia a indivíduos elegíveis para senado, não englobava as mulheres. Nellie e mais quatro parceiras de luta: Henrietta Muir Edwards, Louise McKinney, Emily Murphy e Irene Parlby (que ficaram conhecidas como as Cinco Famosas), iniciaram uma campanha em todo o Canadá e apelaram da decisão judicial. Em outubro de 1929, alcançaram uma vitória histórica provando que as mulheres eram de fato pessoas sob a lei, e assim poderiam ser membros do Senado do Canadá.
Vale lembrar que mesmo com toda a militância, e todas as dificuldades, Nellie manteve um feliz casamento e educou seus cinco filhos. Contar sua história é nossa homenagem a todas as mulheres que diariamente reinventam a si mesmas, subvertem suas histórias e não se entregam aos atalhos e destinos predeterminados para os quais a vida tenta conduzi-las.
Nellie McClung faleceu em 1951. Sua biografia definitiva foi escrita por Michelle Lynn Rosa e Veronica Strong-Boag, publicada em 2003. Em 2008, Charlotte Gray escreveu uma biografia de Nellie McClung para a série Extraordinary Canadians series.
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Ludmila Pizarro é jornalista, apaixonada por livros e mãe da Teresa de quase quatro anos. Escreve no blog Com o pé na estrada.
Liliane Gusmão é mãe da Anaïs de 5 anos e do Heitor de 7 anos. Mora no Canadá desde 2009. Escreve no blog Talvez, peut-être, maybe.
O FemMaterna é um grupo de discussão sobre maternidade com uma proposta feminista. Se quiser participar, basta pedir solicitação na página do grupo. Participe também no facebook.