O que você vai dizer a sua filha?

A leitora L. F nos mandou um texto contando a história de violência e agressão que uma amiga sofreu. Mesmo com a autorização da amiga optaram por manter anonimato para preservar a identidade da mulher agredida e da criança envolvida. Porém, essa história precisa ser publicada para que outras mulheres não se sintam sozinhas quando se perceberem divididas entre a mulher militante feminista e a mãe dedicada que sofreu uma violência.

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Texto de L. F.

O que você vai dizer a sua filha?semana_8_marco

Foi essa a pergunta que fiz a minha amiga, quando ela contou que desejava retirar a denuncia de violência que sofreu do ex-marido.

Eu estava assustada com o que ouvia daquela mulher tão forte, e queria, desesperadamente, que ela enxergasse que retirar a denuncia jamais seria uma solução. Eu queria sacudi-la e perguntar se estava ficando doida. Depois de alguns minutos consegui respirar fundo e me colocar novamente no papel de amiga, escutando, aconselhando, discutindo e apoiando, saindo um pouco do papel de “militante indignada”.

Eu estava vendo ali uma mulher forte, determinada e empoderada, que se sentia perdida, sozinha e frágil. Essa amiga sempre foi militante, feminista e bem atuante. Cria a filha sozinha, com pouquíssimo apoio do ex-marido, e estabelece claramente os valores de independência, força, determinação, integridade e justiça que deseja transmitir a sua filha.

Tem uma história familiar bem pesada. Uma irmã foi estuprada e assassinada com onze anos. Cresceu aprendendo a ter medo de todos os homens e sufocada pela angustia de saber quem era o assassino de sua irmã, vendo-o impune, passeando pela vizinhança. Acho que foi essa história que a tornou uma dessas “feministas, da porra”, para usar a expressão favorita dos baianos.

Essa mulher, feminista, foi agredida pelo ex-marido, pai de sua filha, na frente da criança. Esse ex-marido é o mesmo homem militante, defensor dos direitos humanos e que um dia foi loucamente apaixonado por essa mulher forte e independente. Quando a situação saiu do controle ele oprimiu, humilhou e violentou fisicamente alguém que amava. Ela não se sentiu culpada pela agressão. Sabia o que havia criado aquela situação, mas tinha certeza de que não era culpada por ter sido agredida. Enquanto uma amiga cuidava da filha, foi ao IML fazer o exame de corpo delito. De lá ligou para a irmã pedindo apoio, e ouviu: “o que foi que você fez para provocá-lo?”.

A irmã não conseguiu lidar com outra situação de violência a mulher dentro de sua família. Essa reação fez a mulher agredida se calar. Passou pelo exame sozinha e realizou a denuncia.

Enquadrado na ‘Lei Maria da Penha’, o ex-marido agora é processado pelo Ministério Público e passará por uma ação criminal. Minha querida amiga pediu uma medida cautelar de proteção, para que ele não possa se aproximar mais dela. Essa foi a única forma de se sentir segura.

Os dias e meses foram passando, as feridas físicas foram curadas, mas foi aí que a longa jornada de culpa e sofrimento emocional dessa mulher começou.

O pai “amoroso” dedicou-se a explicar a filha, de oito anos, como a mãe dela era injusta e exagerada. Do tipo “mulher histérica”, sabe? Contou que, por uma bobagem, a mãe dela estava dificultando a vida deles. Mais para frente, quando o Juiz emitiu automaticamente a suspensão do direito de visitas do pai, ao invés de contestar com apoio de seu advogado, ele resolveu avisar a criança, por telefone, de que não poderiam se ver no natal e nem passar as férias juntos, já que a mãe dela havia impedido isso. As lágrimas silenciosas escorriam no rosto da menina linda e delicada que ela é. O coração dividido e sem entender o que estava acontecendo.

Foto de jaycee no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
Foto de jaycee no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Felizmente, essa é uma menina criada por uma mulher muito forte e são muito ligadas. Esse episódio não abalou a união das duas e, dentro dos limites de uma criança, ela parece ter entendido o que está acontecendo. Como mãe, minha amiga também não desejava a suspensão das visitas do pai, tentando preservar a relação que a filha tem, já que ele é um bom “pai de final de semana”. Assim, solicitou à sua advogada que revertesse a decisão do juiz. O direito de visita do pai foi restituído, mas a chantagem emocional e pressão que ele faz em cima na criança não acabou.

Agora, essa mulher agredida, que com a sua história de militância conseguiu se livrar da culpa da agressão, encontrou outro pacote de culpas. Encontrou mesmo, porque foi ali colocado pela nossa sociedade machista para que ela carregue.

Sente-se culpada por ter iniciado uma ação criminal contra o pai de sua filha. Sente-se culpada de que a filha possa ter um pai condenado, que pode ir para a cadeia. Sente-se culpada de destruir o sonho de ser servidor público do homem que um dia amou. Sente-se culpada pelo processo dificultar muito a relação dela com o pai de sua filha, o que termina por ter impacto na rotina da menina. Sente-se culpada pelo sofrimento da filha. Sente medo de ter que enfrentar novamente toda a história durante um julgamento. Se sente sozinha.

A mãe sente-se culpada e a feminista está abalada, sufocada e perdida. Como escolher entre a mulher independente e a mãe dedicada incondicionalmente a filha?

É esse o seu dilema. Mesmo observando que seu agressor não sente nenhuma culpa, se coloca no lugar de vítima. Jamais admitiu, ou irá admitir, qualquer responsabilidade sobre o fato ocorrido, mas cogita retirar a denuncia. Mesmo sabendo que, hoje, retirar a denuncia não irá interromper o processo conduzido pelo Ministério Público. Tem uma ilusão de que retirar essa queixa pode, de alguma forma, mudar o comportamento desse homem em relação à sua filha.

Foi ai que perguntei: o que vai dizer a sua filha?

Talvez, agora, a menina não tenha a dimensão do que está acontecendo, mas essa passagem faz parte de sua história de vida e logo vai conseguir entender. Retirar a queixa é dizer a essa criança que o homem mais próximo dela tem passe livre para agredir a pessoa que ela mais ama. Retirar a queixa é dizer a ela que os homens ficam impunes quando agredirem as mulheres.

Mesmo que o processo continue correndo e ele seja julgado culpado, a mãe retirar a queixa diz muito para a filha. Que postura ela vai tomar contra as agressões que infelizmente sofrerá ao longo da vida por ser mulher? Retirar a queixa é assumir a culpa e responsabilidade, perante seu agressor, que usará isso em sua defesa, tanto na justiça, quanto para manipular os sentimentos de sua filha.

E mais… o que protege a sua filha da agressão desse homem? Nós sabemos que amor não é proteção ou garantia. Se ele não assume suas responsabilidades, que no mínimo arque com as graves consequências de seu ato criminoso. Talvez, assim, a menina que crescerá mulher, esteja protegida.

Ela sabe de tudo isso e concorda. Ela ouve com os olhos marejados e vermelhos, tentando buscar no fundo do seu coração a força da feminista para enfrentar essa situação. Eu não quero deixá-la sozinha, mas por mais que esteja ao seu lado, essa história é só dela. Eu não posso dividir esse fardo, posso apenas apoiá-la para que consiga carregá-lo. A decisão é dela e eu estarei ao seu lado.

Não pude deixar de ficar pensando, por que a mulher deve escolher entre a independência da feminista e a dedicação materna? Por que ainda não conseguimos ser uma mãe feminista? Não julgo a minha amiga e entendo o seu conflito, mas fico indignada por ela ainda se sentir culpada, dividida e confusa. Desejo que chegue o dia que todas as mulheres sejam mães feministas, todo o tempo, sem abrir mão de seus princípios e valores, mesmo diante das situações mais adversas. Desejo que essa linda menina cresça para lutar pelos seus direitos e das demais mulheres, feminista, combatendo a violência. Desejo que esse pai, machista, agressor de mulheres, não consiga contaminar sua confiança.

Nesse 8 de março de 2013 vamos mais uma vez nos unir para chamar a atenção da grave situação de violência contra as mulheres. Não será esse o dia que meus desejos irão se concretizar, mas será mais um passo importante de luta. Espero poder dar esse passo ao lado dessa amiga e de sua filha, que já é também uma mini militante.