Texto de Talita Rodrigues da Silva.
Quando indagamos acerca da representatividade que os feminismos buscam, percebemos que, inevitavelmente, esbarraremos na percepção e na demanda de mecanismos políticos capazes de estabelecer um Estado de equidade, lembrando que equidade diferencia-se de igualdade. Buscamos equidade, por exemplo, ao afirmarmos a legitimidade da Lei Maria da Penha ou das políticas de cotas e, também, da promoção de benefícios paliativos, como o Bolsa Família. Ou seja, buscamos a aceitação de que os direitos das minorias asseguram os direitos de todxs, o que, segundo Deleuze, é a percepção mais próxima do que significa “ser esquerdista”:
Atualmente, estamos passando por um período histórico marcado por contestações de caráter nacional. Contudo, é bom ressaltar, o foco está nas necessidades do meio urbano, que, em termos históricos, é bastante recente e marcado pela falta de planejamento, logo, palco para profundas desigualdades inerentes ao atual sistema implantado, isto é, o capitalismo. Assim, as demandas reverberam os anseios desta classe social, que incha, cada vez mais, os grandes centros. O desponte surgiu diante de um problema bastante urgente da classe trabalhadora, isto é, a dificuldade de locomoção.
Em grandes centros, como o município de São Paulo, há a problemática de que os moradores das periferias precisam se deslocar para participarem dos poucos núcleos econômicos sociais ativos. Sobre isso, o geógrafo Milton Santos fizera um elaborado ensaio crítico, ao que denominou a geografia cidadã dos fixos e fluxos. O que nos interessa ressaltar aqui, no entanto, é que a questão da locomoção não é exclusiva das classes mais pobres, mas, evidentemente, são elas as atingidas de forma mais danosa. Portanto, reivindicar o mínimo de cidadania e dignidade para fazer parte da maquinaria capitalista é um direito legítimo, sobretudo, quando se é mulher e se corre o risco de ser sucessivamente abusada durante determinado trajeto.

Assim, diante desta demanda legítima, surgiu a manifestação espontaneamente organizada e denominada Movimento Passe Livre (MPL). Novamente, a própria geração deste movimento indica que ele não se pensa endogenamente por e para todxs, já que associou como principal mecanismo de divulgação e organização, a internet. Embora tenhamos atingido um bom avanço na democratização das mídias, a inclusão digital ainda não é uma realidade para todxs. Logo, isto denota certo caráter elitista desta organização, bem como deste blog e de outras mídias. Constatar isso em nada desmerece sua existência ou minimiza seus impactos político-sociais, apenas a situa na esfera dos jogos políticos e, quiçá, ajude-nos a compreender melhor como passou de hostil para organização conclamada, em tão curto espaço de tempo. Sobre essa rápida mudança da exposição midiática, sugerimos uma olhada neste vídeo da Maíra Kubik:

O que houve, então, foi que o MPL atingiu sua proposta de redução da tarifa no município de São Paulo, passando de R$ 3,20 para R$ 3,00. Mas esses R$ 0,20 foram muito além e detonaram uma onda de protestos com demandas das mais variadas. Aliás, de tão variadas, pouco ou nada se consegue depreender de palpável, contudo a insatisfação vem sendo comunicada, muitas vezes, de forma torta e que demonstra o pouco amadurecimento crítico no âmbito político-social das camadas descontentes. De movimento inicial com evidente caráter dissonante dos Governos, as atuais contestações passaram, em muitos lugares, a repudiar o partidarismo e rechaçar as esquerdas históricas, confundindo-se noções de “apartidarismo” e “anti-partidarismo”, sem estruturar a crítica de que vivemos em um sistema político pluripartidário e que é somente através dele que elegemos nossos representantes das mais diversas esferas públicas. Com teor subjetivo e que merece ser lido na íntegra, ressaltamos um trecho deste texto da Karen Polaz:
O mesmo ocorre com os manifestantes que levam bandeiras dos seus partidos políticos. Eu, Karen, sou apartidária, mas antes d’eu nascer, antes de surgir a internet e o Facebook, os partidos políticos já estavam há décadas e décadas lutando por direitos sociais, sabem? Então não vou ser ingrata e querer expulsá-los de qualquer tipo de manifestação, porque autoritarismos não endossam uma democracia sana. E essa ingratidão eu não tenho. Nem sou anti-partidária, porque não apoio a premissa insidiosa de que há ideais compartilhados por todos independente do partido político, essa premissa nefasta de que não há discordâncias significativas. Se fosse assim, por que há partidos que, definitivamente, não me representam? Mas meus colegas não estão inteirados disso, não buscam informações de fontes variadas e, de fato, estão se lixando para militantes históricos.
Ou seja, as mesmas pessoas que estavam retro-alimentando nossas ideologias vigentes recheadas de discursos homofóbicos, transfóbicos, racistas e machistas passaram a ocupar as ruas em busca de suprir suas demandas. Contudo, elas não dizem respeito, por exemplo, à velha luta por Reforma Agrária empreendida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), embora o MST também esteja buscando disputar seu espaço. Tampouco, tomam como pautas centrais os problemas relacionados a Belo Monte e as (não) demarcações de terras indígenas e quilombolas pelo Brasil afora. Além de tudo isso, alguns momentos das manifestações reforçam uma forte carga machista, conforme a Jarid Arraes explicita aqui:
Há muitos depoimentos de mulheres agredidas ou violentadas nas manifestações ao redor do país. Testemunhas oculares, com direito a vídeos amadores postados no YouTube, não deixam mentir: as mulheres precisam temer não apenas a repressão policial, mas também a misoginia e a intolerância dos próprios manifestantes. São dezenas os relatos de abuso sexual, tanto por policiais armados quanto por manifestantes homens. Várias mulheres, por conta de qualquer suspeita de pertencer a algum partido político de esquerda, sofreram agressões físicas. Além da violência direta, os manifestantes portavam uma quantidade exorbitante de cartazes machistas, acompanhados de piadas e gritos hostilizando as mulheres.
A misoginia e o repúdio à sexualidade feminina são evidenciados por meio de uma série de insinuações esdrúxulas. Nessas passeatas, manifestantes mostraram que crimes como o desvio de verba e a corrupção, por exemplo, são tão graves e inaceitáveis que podem ser comparados à prostituição feminina. Um rapaz carregava um cartaz alegando que a tarifa do ônibus era muito cara, porque nem a mãe do prefeito, enquanto objeto sexual, valia R$ 3,20. Outros chamavam a presidenta de “sapatão” como argumento político contra sua regência. Isso tudo não é só uma maneira de sequestrar a figura feminina e não se trata meramente de um moralismo sexual hipócrita; isso é misoginia, violência especialmente voltada para a mulher.

Boa parte deste afã de extremo senso comum poderia ser decorrente da própria formatação política de uma movimentação espontânea, isto é, com pouco investimento em debates ideológicos de cunho reflexivo. Poderia responder, também, à influência da recente adesão de mídias tradicionais, investidas com seus discursos genéricos e generalizantes, sob o aval de personalidades com grande apelo popular. Neste domingo (23/06), o apresentador conhecido como Faustão, por exemplo, usou boa parte de seu programa televisivo (Domingão do Faustão) para saudar “a corajosa juventude brasileira”, ao mesmo tempo em que praticava um discurso altamente machista, homofóbico, transfóbico (em dado momento, afirmou que, se um homem (supõe-se cis*) não quiser desejar uma mulher, bastaria imaginá-la como trans*) e lisofóbico. Isso mostra que, mais do que nunca, nós, feministas, precisamos nos consolidar para nos afirmarmos enquanto forças ativas nestas disputas que começam a despontar.
Reivindicamos há muito tempo a importância de termos mais mulheres feministas ocupando o cenário político. Pois, embora, os atuais protestos tenham gerado respostas positivas de governos locais, governadores e também da Presidenta Dilma, as demandas relativas às pautas pela equidade das condições de vida das meninas e mulheres ainda não receberam os incentivos devidos. Precisamos, por exemplo, pautar a disputa para fortalecer a visibilidade da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH). Mas, conforme sabemos, isso não é muito fácil. O acesso das mulheres à composição da máquina política é dificultado por n fatores estruturais, como a Xênia Mello nos contara durante sua disputa:
Não, nem tudo são flores. A disputa eleitoral da forma como percebemos hoje, invisibiliza o discurso feminista! Nos horários de propaganda eleitoral vemos uma enxurrada de campanhas que somente reconhecem a família “margarina” e ignoram uma pluralidade familiar, como as famílias de mães solteiras, famílias lesbo e homoparentais. Vemos também a invisibilidade da mulher trans*, da mulher surda, às politicas voltadas à população negras são ignoradas. A necessidade de um transporte público de qualidade que diminua a vulnerabilidade de assédio contra as mulheres não está no debate político hegemônico. A defesa de uma educação de respeito no trânsito, que seja não sexista e que promova que mais mulheres, gestantes, pais e mães com filhos peguem suas bicicletas e ocupem a cidade também não faz parte dos programas da grande maioria dos políticos e partidos.
A política da forma como está hoje, invisibiliza a mulher. Todo momento a minha idade é questionada, o meu corpo medido. A nossa subjetividade e a autonomia do nosso corpo são violadas e invisibilizadas. Há situações em que somente pelo fato de você fazer campanha, e por consequência pedir votos, machistas de plantão se sentem no direito de te tocar, beijar, segurar e assediar. Não, não é porque precisamos de votos, não é porque estamos em campanha nós permitiremos a violência, a autonomia do meu corpo a minha subjetividade não podem ser violadas.
Assim, contamos com um cenário político de grandes possibilidades, dentre elas, a de sermos massivamente inviabilizadas, ou a de pautarmos algumas de nossas demandas e ocuparmos mais espaços tanto nas ruas quanto nos cargos públicos. Obviamente, temos enormes desafios pela frente para estabelecermos uma governabilidade que entenda que pensar o interesse das minorias é, sobretudo, pensar uma nação, mas também temos muito fôlego. E para ampliá-lo, deixamos abaixo um vídeo muito importante que relata um pouco sobre nossa batalha histórica por mais oportunidades de direito: