
Texto de Maíra Kubík.
Quando as manifestações começaram, eu escrevi um texto. Depois outro. Logo eram três, quatro. Fiz um vídeo e coloquei no YouTube. Twitter, Facebook, Google+. Percorri todo o caminho das pedras da internet contemporânea porque queria compartilhar a minha opinião.
E, assim como eu, muitxs outrxs eus postaram, refletiram, palpitaram, afirmaram e questionaram o agito social e político que tomou conta de nós. Cada uma do seu modo, com um olhar. Uma pluralidade impressionante, uma avalanche de sensações e leituras que, de repente, explodiu e deixou todxs imersos, mergulhadxs, quase sem fôlego.
Me vejo então afogada entre tantas possibilidades e tomadas de posição.
Do que mesmo nós estamos falando? Aliás, existe algum “nós” ou somos todxs “eus”? Ou somos “eus” e “nós” ao mesmo tempo? Estamos realmente conversando, dialogando em algum plano comum, ou estamos dispersxs, desconexos?
Não há unidade nessas mobilizações, isso é óbvio. E incrível. É a multiplicidade, e não a unidade, que permite a variação, as infinitas opiniões e, consequentemente, a rejeição do pensamento binário, fechado e restrito, tão combatido pelas feministas e cujo alerta maior nos foi feito há muito pelas negras e lésbicas, que já indicavam que não havia apenas “uma” mulher ou “um” feminismo.
Assim, organizar e estruturar as movimentações atuais significaria, para mim, o seu engessamento, a perda de sua riqueza e vivacidade. Não é à toa que se tem usado tanto a palavra “ordem” nos pronunciamentos das autoridades e na TV aberta. A falta dela é perigosíssima: abre espaço para rupturas e para fissuras. Ao mesmo tempo, ressaltá-la ao extremo também mostrou-se uma ameaça: pode levar ao fascismo, à repressão, à ditadura – exemplos desse tipo não nos faltaram nos atos recentes. Assim, a mediação encontrada foi legitimar as mobilizações, elevando xs manifestantes à categoria de uma maioria “pacífica” e alguns “vândalxs”. Tenta-se apaziguar os ânimos de algo que já não tem mais volta. Os blocos estão nas ruas e nelas permanecerão.
Mas como fazemos então? Continuamos, cada uma da sua maneira, tentando transformar o mundo com nossos próprios desejos? Cada uma com seu próprio cartaz?
Penso que sim, e penso que não. Afinal, vivemos em sociedade, somos perpassadxs constantemente por outrxs, ao mesmo tempo em que, em geral, sempre preservamos algo de nós, ainda que o nosso “eu” esteja em constante mutação. É como se o nosso núcleo interno, em movimento permanente, existisse no coletivo e independentemente dele. Estamos conectadxs, transmitimos e recebemos impulsos. Mas afirmar isso basta para nxs manter juntxs?
Quando reflito sobre as seriam saídas possíveis para as questões do Brasil hoje me vem à mente a palavra “sororidade”. É uma expressão bastante desgastada dentro do debate feminista, eu sei. Mas não quero dizer aqui a sororidade tal como muitas vezes foi evocada no século passado, em que propagava-se o mito de uma união “natural” entre as mulheres por elas supostamente terem experiências ou vivências semelhantes. Penso, sim, na ideia de solidariedade, de irmandade, de afinidade. Como podemos, afinal, cada uma com seu próprio post, blog, local de atuação, com suas críticas e interpretações, nos mantermos abertas, ouvintes e tolerantes com todxs xs outrxs?
Digo isso ao ver tudo que tem pipocado, por exemplo, sobre o estatuto do nascituro e a “cura” gay. E logo concluo, alegre, que esse espaço das Blogueiras é uma confluência de toda essa pluralidade de visões dentro de um território necessariamente demarcado: os feminismos.
Mas e quando a pauta é 20 centavos ou as mortes absurdas na Maré, como estendemos a mão e participamos desse caldo, sem direção, que também nos toca profundamente? Como dizer que esse “nós” também sou eu?
Certamente não devemos nos importar apenas porque sabemos que pessoas que se identificam como mulheres ou feministas estão envolvidas nesses processos. Ou que uma mãe perdeu seu filho para o Bope.
Temos que nos preocuparmos porque ser feminista é, acredito, caminhar lado a lado com a expectativa e o desejo de mudanças profundas na sociedades, de transformação do estado das coisas. Lembrarmos-nos, aliás, porque reivindicamos os feminismos pode nos ajudar, e muito, a experimentar esse momento tão intenso. E preservar esse sentimento talvez seja justamente o necessário para estabelecermos e cultivarmos essa sororidade em um momento de tantas perspectivas e possibilidades. Solidariedade, revolta, transformação. A língua que queremos falar.
Bibliografia: DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995. Vol 1.