‘Clube de Compras Dallas’ enfraquece atrizes e atores trans

Texto de Chelsea Hawkins.

Tradução de Bia Cardoso. Publicado originalmente com o título: ‘Dallas Buyers Club’ Fails Trans Actors no site PolicyMic.com em 12/11/2013.

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A atuação de Jared Leto no filme ‘Clube de Compras Dallas’ está sendo classificada como digna de um Oscar — uma performance que mostra seu progresso como ator. Porém, sua transformação em uma mulher transexual também nos faz questionar se ele seria a pessoa mais adequada para o papel.

Leto interpreta uma mulher transexual, Rayon, que trabalha ao lado de Matthew McConaughey no contrabando de medicamentos, como o AZT, para combater a doença autoimune — ambos estão morrendo de AIDS. Não é tarefa fácil para um ator cisgênero assumir o papel de uma pessoa transexual, Leto mergulhou no personagem de Rayon de tal forma que o diretor do filme, Jean-Marc Vallee, disse que “nunca conheceu Jared Leto, mas ele se encontrou com Rayon”.

Apesar de tudo o que Leto traz para a tela, alguns se perguntam: por que o papel de uma mulher trans não foi feito por uma atriz ou ator trans?

Jared Leto interpreta o papel de Rayon no filme 'Clube de Compras Dallas' (2013).
Jared Leto interpreta o papel de Rayon no filme ‘Clube de Compras Dallas’ (2013).

A maioria das pessoas teria grandes dificuldades para citar o nome de uma atriz ou ator transexual. Se soubessem, achariam mais difícil ainda citar um momento em que viram uma atriz ou ator transexual interpretar mais do que um personagem estereotipado ou estático. Publicamente, atrizes e atores trans tendem a ser listados nos créditos como “tranny” (travesti) ou “atraente, mas uma mulher estranha”, fora alguns poucos papéis sérios reconhecíveis na mídia mainstream.

A ativista LGBT e jornalista Julieta Jacques escreveu em 2012: “Onde estão os atores trans profissionais? Esse é o ponto em que atores cisgênero interpretando pessoas trans se torna mais problemático: não me lembro de ver uma pessoa declaradamente trans interpretando o papel de uma pessoa cisgênero comum, por isso, sua única porta de entrada talvez seja interpretando pessoas trans”. Levando em consideração que as pessoas transexuais são invisíveis na mídia contemporânea, torna-se problemático o fato de Leto estar tomando o papel de uma pessoa trans, quando há atrizes e atores trans lá fora tentando encontrar papéis e trabalho.

Embora seja importante reconhecer que Leto, ao assumir o papel de Rayon, chama a atenção para a experiência de pessoas transexuais, também é importante reconhecer que as histórias de grupos de pessoas sub-representadas, frequentemente ignoradas e mal interpretadas podem ser melhor contadas pelas pessoas que vivem essas vidas. Susan Rohwer do LA Times aponta justamente que “já não é mais aceitável escalar atores brancos para papéis de outras raças ou etnias, então, por que ainda é aceitável escalar alguém que não é transexual para o papel de uma transexual?”.

Escalar atrizes ou atores trans para papéis trans produziria efeitos sociais poderosos. Como dramaturgo, MJ Kaufman escreveu sobre a representação de pessoas declaradamente trans no teatro:

“Escalar atores trans para papéis trans é importante, não só porque precisamos tornar nossos corpos visíveis, mas também porque as vidas de muitas pessoas trans são diretamente impactadas pela transfobia.

Não somos apenas sub-representadas na arte e na mídia, muitas pessoas trans enfrentam longos períodos de desemprego, muitos jovens trans são obrigados a viverem nas ruas e há um alto número de mulheres trans em situação carcerária… Observando que esta é a realidade atual para artistas trans, é politicamente inconcebível dar um emprego criado para uma pessoa trans a uma pessoa cis”.

Para alguém como eu — alguém que é cisgênera — a experiência das pessoas dentro da comunidade trans é uma. Eu, e a maioria das pessoas na minha vida, nunca iríamos saber ou entender, se não fosse por representações na mídia. O papel que a mídia pode desempenhar para ajudar as pessoas a entender o que está fora do seu alcance imediato é vital. Laverne Cox, a atriz que interpreta a transexual Sophia no seriado ‘Orange Is The New Black’’ afirma que a visibilidade das pessoas LGBT foi alterada com a televisão, então, a maneira como o cinema e a televisão representam a comunidade trans e suas histórias poderia iniciar conversas sobre transfobia.

No entanto, a visibilidade dessas atrizes está aumentando. Laverne Cox é um exemplo interessante. Através de blogs, da defesa de causas da comunidade LGBT e de papéis em filmes independentes, como ‘Musical Chairs’, ela tem, em muitos aspectos, se tornado um símbolo para as atrizes e atores trans nos Estados Unidos.

Cox não é a única pressionando por mais inclusão de pessoas transexuais na mídia. A atriz trans Harmony Santana foi indicada ao Independent Spirit Award por seu papel no filme ‘Gun Hill Road’ de 2011, que fala sobre a transição de gênero de um adolescente e as repercussões e dificuldades que surgem a partir dessa transição. Sua nomeação fez dela a primeira pessoa transexual a ser indicada para um grande prêmio americano de atuação.

O que atrizes como Cox e Santana estão fazendo só foi possível após o trabalho de alguém como Candis Cayne, que fez história como a primeira pessoa transexual a ter um papel recorrente em um programa de televisão, quando ela interpretou Carmelita em ‘Dirty Sexy Money’. Então, não é nenhum exagero dizer que o que Cox e Santana estão fazendo agora é lançar as bases para que no futuro homens e mulheres transexuais recebam reconhecimento e boas propostas de trabalho. Quando alguém como Jared Leto está qualificado para assumir o perfil de uma mulher trans — sendo ele próprio cisgênero — é problemático, porque isso significa que alguém que se identifica como trans foi preterida para o papel. Imagine se não fosse Cox, mas um ator cisgênero fazendo o papel de Sophia em ‘Orange Is The New Black’ — o papel teria muito menos profundidade e provavelmente estaria mais próximo da caricatura ao invés da sinceridade.

Não se trata de julgar a habilidade ou talento de Leto como ator, o fato é que pessoas declaradamente trans estão perdendo oportunidades substanciais de trabalho na área de atuação quando alguém como Leto assume o papel de Rayon — e, papéis como Rayon em ‘Clube de Compras Dallas’, já são poucos e raros, são muitas vezes a única oportunidade para pessoas como Cox, Santana ou Cayne quebrarem barreiras e estrearem na tela grande.

Cox e Santana representam apenas duas pessoas dentro da criativa comunidade trans artística. Com o aumento da visibilidade trans, também espero que os espaços e oportunidades para as pessoas declaradamente trans venham a crescer. Neste fim de semana começa o 11 º San Francisco Transgender Film Festival, até o momento, a maior oportunidade que as pessoas terão de assistir a curtas-metragens com foco no trabalho de pessoas trans. E, no início deste ano, a rede americana CW anunciou que estava trabalhando em um novo projeto chamado ZE, sobre o processo de transição de uma adolescente do sexo feminino para o masculino no Texas — espero que ZE torne-se um espaço para atrizes e atores transexuais encontrarem trabalho, e não apenas assistirem atrizes e atores cisgêneros desempenharem as suas histórias.

Autora

Chelsea Hawkins é uma escritora freelancer, formada em literatura inglesa pela UC Santa Cruz e está fazendo mestrado em jornalismo na Universidade de Sheffield, no norte da Inglaterra. Ávida leitora, viciada em notícias, cozinheira amadora e epicurista por natureza, além de péssima musicista.

+ Sobre o assunto

Sobre Jared Leto e mulheres trans* por Jeane Melo.