Texto de Simone da Silva Ribeiro Gomes.
Setembro de 2014, quarenta e três meses após a posse de Dilma Rousseff como presidente do Brasil, e nós, feministas, seguimos em duras frentes de luta pelos direitos sexuais e reprodutivos das brasileiras, o aborto esse, o mais flagrante (e urgente). Após a chegada à presidência da primeira mulher, militante, presa e torturada na ditadura militar, seguimos frustradas com os (des)compromissos políticos assumidos na campanha eleitoral e com as práticas vagarosas do Legislativo e Judiciário em admitir e corrigir práticas históricas perpetuadoras de desigualdades como a criminalização do aborto.
Em que pese às opiniões pessoais: “eu pessoalmente, sou contra o aborto, nunca faria”, ou “apesar da minha religião condenar, eu sou a favor do aborto”, é chegada a hora de encaramos o aborto de forma mais ampla. É necessário o trabalho por uma mudança legislativa. O aborto é sim, uma questão de saúde pública, uma vez que a atual legislação que criminaliza é também a responsável por uma prática (quase) invisível em que mulheres pobres morrem em leitos do SUS, vítimas de consequências da curetagem uterina mal-feita e de corolários de abortos caseiros, ao passo que mulheres de classe média expõem-se a clínicas clandestinas de alta rotatividade, também encarando a morte, como no caso de Jandira Magdalena dos Santos.
Se a legislação não atende aos anseios da sociedade, o descompasso precisa ser debatido, afinal, leis que seguem encarando corpos de mulheres como corpos meramente reprodutivos, não podem continuar regendo uma realidade de vidas femininas com desejos e ensejos muito mais complexos.

O aborto é um problema da sociedade inteira: meu, seu, e de todas as brasileiras que já tiveram que passar por essa experiência. Em 2010, pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) revelaram que uma em cada cinco brasileiras de até 40 anos já fez ao menos um aborto. E ainda assim, persiste um pensamento conservador, carregado de moralismos e crenças religiosas (sobre os direitos de corpos alheios), que acaba refletindo como termômetro eleitoral, em que candidatos/as devem se posicionar contra a descriminalização do aborto.
No ano de 2010, uma pesquisa demonstrou o peso da temática na discussão eleitoral: nas eleições municipais os candidatos que defendem o aborto perdem votos. Caso se declarem contrários, ressalvando, porém, seu respeito às normas legais (que autorizam o aborto em caso de estupro, risco de vida para a mãe e anencefalia), tendem a ganhar votos. E os que se manifestam contra toda forma de aborto, não perdem nem ganham.
O debate presidencial até o momento endossa essa realidade aterrorisante. Dos candidatos à presidência, dentre as quais figuram três mulheres — duas com reais chances de se elegerem — somente Luciana Genro (PSOL) e Eduardo Jorge (PV) posicionaram-se a favor da descriminalização e legalização do aborto.
Contudo, não é de hoje que o pêndulo eleitoral tem no aborto, questão de saúde pública, mas paradoxalmente de foro íntimo, um trunfo ao contrário. Ou seja, cabe evitar a temática nos debates, para que a grande bancada conservadora não se posicione contra o/a candidato/a. O resultado dessa discussão em âmbito nacional pode ser observado na campanha eleitoral de 2010. A polêmica entre a candidata Dilma Rousseff, que no segundo turno assinou uma carta compromisso contra a descriminalização, e o candidato José Serra, que contou com a exposição de um episódio passado de sua esposa, Monica Serra, e uma posição contrária a legalização do aborto, é emblemática a esse respeito: o termômetro eleitoral aponta para um voto conservador em âmbito nacional.
Sobre o voto conservador (e sua procedência religiosa e incidência legislativa), é importante enfatizar que o Estado brasileiro é laico — sem religião oficial, e a esfera religiosa íntima não deve sobrepujar-se às questões de saúde pública. Para a antropóloga Débora Diniz* da UnB: “O aborto não pode ser discutido em termos religiosos. A religião é matéria de ética privada, as pessoas acreditam ou não […] Se uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez um aborto, muita gente do seu entorno soube. A verdade inconveniente é que o aborto faz parte da vida cotidiana no Brasil, mas ninguém quer falar a respeito, prefere ignorar”.
Novamente estamos em ano eleitoral e a conjuntura, no que tange à vida e morte de muitas brasileiras, é semelhante a de quatro anos atrás. Já estamos em setembro e a sociedade brasileira persiste endossando uma realidade cruel com a vida de mulheres pobres e não tão pobres. Seus direitos sexuais e reprodutivos seguem a mercê de interesses da classe política e as crenças religiosas de alguns — no caso do Legislativo leia-se, uma maioria masculina, no que ficou conhecido como a bancada evangélica — sobrepõem-se ao corpo de terceiro/as. Ademais, moralismos no âmbito da saúde, acabam pesando mais no debate do que a saúde pública – principalmente a de jovens mulheres negras e pobres – dado que são recorrentes os julgamentos como: “na hora de abrir as pernas você não pensou” em postos de saúde e hospitais, em todo o país.
É preciso que o debate do aborto esteja na ordem do dia. Para isso, vale debater e militar para o convencimento de estruturas mais amplas, de forma que consensos sobre a saúde das brasileiras, seus corpos e suas vidas não sejam somente o objeto de escrutínio e interesses moralistas de diferentes classes (política, religiosa, médica).
Autora
Simone da Silva Ribeiro Gomes é feminista e doutoranda em Sociologia do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).