Texto de Bia Cardoso para as Blogueiras Feministas.
Ao ver a entrevista que Rafucko fez com a caturnista Laerte Coutinho, em que dentre diversos temas (segurança pública, publicidade infantil, binarismos dos banheiros) teve como um dos pontos principais o feminismo e quais as questões atuais das mulheres, sabia que iam ter pessoas reclamando, dizendo que: “Laerte não pode falar de feminismo porque não é uma mulher”.

Laerte é uma mulher. Afirma ser uma mulher. Respeitar isso é parte fundamental do respeito de sua identidade. Não respeitar isso e insistir que Laerte é um homem vestido de mulher, significa retirar sua identidade, sua existência e sua escolha de ser. Ao negar a identidade de alguém estou me colocando no papel de censor da sociedade, em que só é permitido ser aquilo que é “aceitável”. Afinal, Laerte também sofre opressão do machismo por se afirmar mulher.
Dizer que Laerte não pode ser feminista ou que não pode falar de feminismo significa retirar dela sua voz como mulher. Significa silenciá-la. O feminismo para mim é vândalo, marginal, transgressor. Deve ser um movimento que inclui constantemente e isso não significa que suas principais pautas serão perdidas.
A violência estrutural, social e institucional que as pessoas trans* sofrem tem relação direta com o machismo, o racismo, a desigualdade social, o capacitismo, entre tantas. A transfobia é mais uma forma de dizer que as pessoas devem ser presas a gêneros, sexos, corpos. É mais uma maneira não só de censurar, mas de não permitir a existência. As mulheres trans*, especialmente quando não têm sua identidade reconhecida e documentação modificada, todos os dias sofrem um feminicídio social.
É importante lembrar também que não existe uma bíblia do feminismo, nem um sindicato do feminismo ou uma representante oficial do feminismo. Então, Laerte não fala de feminismo colocando-se como a única protagonista ou a grande voz do movimento — nem mesmo do transfeminismo. Assim como eu ou qualquer pessoa que escreva na internet também não é. Porém, convidar Laerte para falar de feminismo representa muito a maneira como esse movimento social tem se movimentado de forma interseccional nos últimos anos. No Brasil, ainda não conquistamos o direito ao aborto legal e a violência doméstica ainda é um grande problema social, porém, que ótimo que as mulheres negras e as mulheres trans* tem tido cada vez mais voz, especialmente por meio da internet. Que ótimo que há pessoas que vêem nessa inclusão um avanço.
Dentro do contexto de um programa de entrevista no youtube, Laerte é uma boa representação da mulher atual. É uma mulher que vem se descobrindo mulher, questionando o ser mulher, transgredindo a idade da mulher, buscando as suas formas de ser mulher, enfrentando a sociedade a sua maneira para ser mulher. Isso é o que eu desejo para todas as mulheres. Por isso, Laerte é uma grande representante do meu feminismo.
As pessoas muitas vezes me dizem que questionar o gênero, desgenitalizar o feminismo, não vai impedir que mais mulheres morram, não vai impedir que meninas indianas sejam mortas porque seus pais preferem meninos. E não vai mesmo, porque nem tudo tem o mesmo foco. Porque jamais conseguiremos evitar a morte de meninas indianas sem compreender sua cultura. Porém, uma coisa não impede a outra. Incluir as demandas específicas de mulheres negras, trans*, deficientes, mães, lésbicas, bissexuais, solteiras, pobres, entre outras também é fundamental para pensar em novas maneiras de combater tanto a violência contra as mulheres e o machismo, como também as outras diversas estruturas de opressão social.
Também me dizem que é preciso sempre lembrar que a opressão das mulheres tem origem nos seus corpos, no asco a vagina, na maneira como nossos corpos existem apenas para servir aos homens. Porém, para mim, um corpo nunca está destituído de um contexto, de um arquétipo construído em cima dele. Os corpos aceitos tem seus arquétipos, assim como os corpos rejeitados. Há palavras depreciativas para todos os corpos de mulheres, independente de ser uma mulher com buceta ou não. Se me chamam de mulher e me oprimem por isso, quero mais é estar ao lado de Laerte lutando pelo direito de que ela também seja chamada de mulher, porque é isso que quero, cada vez mais e mais pessoas se declarando mulheres e tendo muito orgulho disso.
Logo no início da entrevista, Laerte diz: “O feminismo é uma luta-guia. O feminismo é uma espécie de carro-chefe das revoluções sociais”. Essa é uma das definições do meu feminismo e, enquanto eu militar, estarei sempre buscando incluir mais pessoas com suas demandas específicas e conceitos questionadores, sempre com o objetivo de transgredir e vandalizar qualquer forma de limitação de vida imposta pela sociedade.
Por fim, uma crítica que permanece:
“As teorias de identidade feminista que elaboram os atributos de cor, sexualidade, etnia, classe e saúde corporal concluem invariavelmente sua lista com um envergonhado ‘etc’. Por meio dessa trajetória horizontal de adjetivos, essas posições se esforçam por abranger um sujeito situado, mas invariavelmente não logram ser completas. Contudo, esse fracasso é instrutivo: que impulso político devemos derivar desse exasperado ‘etc’, que tão frequentemente ocorre ao final dessas enumerações? Trata-se de um sinal de esgotamento, bem como o próprio processo ilimitável de significação. É o supplément, o excesso que necessariamente acompanha qualquer esforço de postular a identidade de uma vez por todas. Entretanto, esse et cetera ilimitável se oferece como um novo ponto de partida para teorização política feminista.” (BUTLER, Judith. Problemas de Gênero, 2012. Pgs. 206 e 207).