Profissão Repórter: um programa cissexista sobre transexualidade

Esse mês, foi exibido na Rede Globo um episódio do “Profissão Repórter” que teve como tema: a transexualidade. O programa recebeu elogios de várias pessoas nas redes sociais, descrevendo-o como tocante e emocionante. Porém, por mais que uma emissora aberta brasileira abra espaço para pessoas trans*, é preciso observar como isso é feito e qual o discurso veiculado. Não basta apenas colocar as pessoas na televisão se ainda as tratam como algo exótico ou que corrobora o discurso da patologização.

Portanto, publicamos hoje um texto de Daniela Andrade falando justamente sobre essa questão. E, também indicamos ler as observações da Travesti Reflexiva sobre o mesmo programa em sua página do Facebook.

Robis e Duda. Entrevistados no programa Profissão Repórter cujo tema foi transexualidade.
Robis e Duda. Entrevistados no programa Profissão Repórter cujo tema foi transexualidade. Imagem: TV Globo.

Texto de Daniela Andrade.

Para a maioria das pessoas que não são transexuais, parece-me que realmente foi o máximo o programa Profissão Repórter sobre o assunto, pelo que li nos comentários. Mas o que esperar de pessoas criadas em uma sociedade cissexista dizendo que um programa cissexista foi o máximo?

Viver na nossa pele é ter que responder o tempo todo perguntas do tipo: “mas quando você virou mulher?”, como se houvesse conosco uma mutação ou um belo dia olhando o espelho tivessemos decidido virar alguma coisa, e detalhe, alguma coisa que a sociedade inteira repudia

Somos pessoas tão invisíveis dentro da sociedade, incluso aí espaços LGBTs que na verdade são espaços gays, que acham que o simples fato de mencionarem a palavra transexual e fazerem uma reportagem endossando o discurso médico-biologizante, já é motivo para ajoelharmos e agradecermos.

Esse tipo de visibilidade eu mesma não preciso, estou farta disso.

O programa deveria contar a história das pessoas que se mutilaram ou se mataram esperando durante décadas as cirurgias no SUS. Como só há 4 hospitais públicos no Brasil realizando, em que se faz uma cirurgia por mês, 12 por ano, essa população encontra-se num total vácuo de direitos constitucionais os mais básicos que nos são negligenciados. Mas evidentemente isso não deve ser preocupação de ninguém.

O programa deveria contar a história dos adolescentes que vivem em depressão sem ter o direito legal de se hormonizarem no Brasil, o ano passado o governo Dilma revogou a portaria que lhes dava esse direito. Afinal de contas, os adolescentes que veem suas vidas sendo destruídas pela puberdade, que se destruam junto com ela. Não é importante debatermos esse assunto.

O programa deveria contar-nos que há 20 anos se propõe leis de identidade de gênero no Brasil e JAMAIS foi debate a aprovação das mesmas, em que pesem as parcas e raras inferências nos recentes meses. O PL João Nery é apenas mais um entre tantos outros PLs que nunca foram preocupação dos movimentos sociais e da sociedade como um todo. E tenho certeza que não será aprovado daqui há 5 ou 50 anos. Não há pressão para que os congressistas se movam. Enquanto isso, se quisermos ter o privilégio de sermos reconhecidas e reconhecidos como cidadãos e cidadãs para o estado brasileiro, que paguemos advogados e rezemos para que nosso processo não caia na mão de um juiz transfóbico e legalista que dirá que não há qualquer previsão legal para a mudança de nome e sexo nos documentos da população de transexuais. E não ter documentos que identifiquem a pessoa que de fato você é, é como ser estrangeiro no seu próprio país, é viver pedindo por favores o tempo todo.

O programa deveria contar a história de tantas pessoas transexuais que por serem transexuais estão fadadas ao desemprego, ao subemprego, à prostituição e ao salão de beleza. Define a sociedade que é só mesmo para isso que servimos. Saber que 90% das mulheres transexuais e travestis se prostituem no Brasil parece não chocar ninguém. Deve ser mesmo um gene o fato de 90% dessa população se prostituir, quem sabe está no nosso DNA, não é? Não vamos nos preocupar com políticas públicas de promoção de emprego e renda para essa população, afinal, quem é essa gente que quer todos os direitos de uma vez?

O programa deveria contar a história de tantas pessoas transexuais que foram expulsas da casa dos seus pais pois muitas vezes aceitam um filho ou filha criminosa, mas com bastante frequência não aceitam um filho ou filha transexuais. O que se faz da sua vida sem o apoio da sua família, na rua muitas vezes ainda criança ou adolescente?

O programa deveria contar as discriminações diárias que sofremos nos ambientes escolares, lugares onde sequer podemos usar um banheiro. As agressões e violências que sofremos tanto dos alunos quanto de professores e gestores escolares que se recusam a nos respeitar de acordo com nossa identidade de gênero, ocorrendo que a taxa de abandono escolar dentro dessa população é algo bastante preocupante. Mas novamente, não é para o restante da sociedade.

O programa deveria contar a forma como a mídia nos trata, nos patologizando, criminalizando, exotificando, hipersexualizando e desumanizando. Mídia essa que nada mais é que reflexo da sociedade, e que contribui para a taxa a mais alta do mundo de assassinato de travestis e transexuais por crimes de ódio. Mas claro, isso também não é importante. Ainda que a expectativa de vida de uma mulher transexual ou travesti seja de 30 anos no Brasil.

Mas enfim, importante é continuar a nos mostrar como seres exóticos que viram ou desviram homem ou mulher e que a única preocupação que temos na vida é fazer uma cirurgia de mudança de genital, cirurgia essa que se a pessoa não entrar na justiça para que o estado cumpra seu dever constitucional de realizar, é com grande probabilidade que morrerá sem ter feito.

Autora

Daniela Andrade é uma mulher transexual que luta ansiosamente por um presente e um futuro mais digno às todas as pessoas que ousaram identificar-se tal e qual o são, independente daquilo que a sociedade sacramentou como certo e errado. Não acredito no certo e o errado, há muito mais cores entre o cinza e o branco do que pode supor toda a limitação hétero-cis-normatizante que a sociedade engendrou. Escreve em seu blog pessoal: Alegria Falhada. Administra a página:Transexualismo da Depressão.

Esse texto foi publicado originalmente em seu perfil pessoal do Facebook no dia 19/11/2014.