Quando o casamento passa a ser uma causa da esquerda

Texto de Lettícia Leite para as Blogueiras Feministas.

Em janeiro de 2013, motivada pelas manifestações que se multiplicavam de maneira notável no território francês a favor e contra o casamento entre lésbicas e gays, durante o período de discussão e votação da lei que o autorizaria — aprovada em abril daquele ano —, publiquei aqui neste espaço um texto sobre o assunto: Pelo casamento entre um homem e uma mulher?!

Passados quase dois anos em que a lei foi aprovada na França, as manifestações contrárias jamais cessaram, é preciso contudo ressaltar que algumas questões associadas aos direitos desses novos casais – que no último ano representaram uma fatia de 13% dos matrimônios feitos na capital francesa — ainda estão longe de encontrar uma solução. Dentre elas, destaco o direito à RMA (Reprodução Medicamente Assistida) para casais de lésbicas.

No entanto, não é meu objetivo tratar diretamente do estado atual desta e de outras questões na França, no Brasil ou em outro país. O que gostaria é de apresentar um exemplo de uma voz minoritária, vinda do cenário feminista e lésbico francês, que coloca em cheque não apenas a pertinência das reivindicações em prol da extensão do direito ao matrimônio para casais de gays e lésbicas — pauta que nos últimos anos ganhou destaque mundo afora nas agendas dos movimentos LGBT’s ; mas também coloca críticas e questionamentos relativos aos recursos que, para além da adoção clássica, hoje podem permitir aos casais constituídos por mulheres ou homens a se tornarem mães e pais. Neste sentido, um outro exemplo mencionado ao longo da entrevista, para além da RMA, será o recurso à chamada barriga de aluguel — que também é buscado por casais heterossexuais, mas cujas implicações éticas e jurídicas encontram-se em debate em vários países (1).

No texto outrora publicado, mencionei rapidamente o argumento principal que motiva algumas feministas a este questionamento relativo à pertinência da luta pela extensão do direito ao casamento e, cujas justificativas não vêem ao encontro daqueles apresentados pelos grupos que hoje, no Brasil, buscam impedir o reconhecimento deste (a meu ver) importante direito recém-adquirido. Visto que estes últimos pautam-se na ideia da família como um núcleo social formado exclusivamente a partir da união entre um homem e uma mulher.

Como forma de apresentar aspectos deste debate potencialmente controverso, tomei a iniciativa de traduzir uma entrevista feita com a historiadora e militante feminista lésbica francesa Marie-Josèphe Bonnet, publicada no jornal Libération em fevereiro de 2014. Entrevista concedida por ocasião do lançamento do seu livro publicado em janeiro do mesmo ano: Adieu les rebelles !. Ensaio ao longo do qual a autora trata justamente dos motivos que a levam a se opor à pertinência destas reivindicações que, a seu ver, apontariam para um preocupante desejo de normalização pautado em um modelo familiar patriarcal, heteronormativo e burguês. Pontos que ela trata ao longo da entrevista que segue.

Ademais, diante dos dados recém-publicados pelo IBGE apresentando o número de casamentos entre gays e lésbicas que foram realizados ao longo do ano de 2013 no Brasil, creio que talvez seja pertinente não perdemos de vista esse debate. A tradução é livre e o objetivo não é concordar plenamente com as ideias apresentadas, mas sim refletir sobre os modelos familiares e sociais que os novos casais pretendem ou não (re)produzir.

“Um paradoxo inacreditável: quando o casamento passa a ser uma causa da esquerda!”

Texto de Natalie Levisalles. Tradução de Lettícia Leite. Publicado originalmente com o título: ‘Le mariage est devenu de gauche, un paradoxe incroyable!’ no site Liberátion em 07/02/2014.

Marie-Josèphe Bonnet. Foto de Jean-Luc Bertini para a revista Elle francesa em 2013.
Marie-Josèphe Bonnet. Foto de Jean-Luc Bertini para a revista Elle francesa em 2013.

Militante, homossexual e feminista, a historiadora Marie-Josèphe Bonnet considera a aquisição do direito ao casamento para todas as pessoas a vitória de uma norma pequeno-burguesa sobre a contracultura e seus ideiais emancipatórios.

Marie-Josèphe Bonnet é historiadora, militante homossexual e feminista. Nos anos 1970, ela fez parte do Movimento de Liberação das Mulheres (MLF), foi co-fundadora do Fhar (Frente homossexual de ação revolucionária) e do grupo lésbico les Gouines rouges. Atualmente, no momento em que milhares de militantes saem às ruas pelo direito ao casamento, e que a França se bate em torno da “teoria do gênero”, ela publica ‘Adieu les Rebelles !’. Nesse livro bastante estimulante, a autora nos coloca uma questão: a extensão do direito ao casamento para todas as pessoas representa de fato um progresso social, ou trata-se de uma vitória de uma antiga ordem patriarcal?

Você é contra o casamento homossexual?

Eu sou contra o casamento em geral. Para mim, como feminista, o casamento representa historicamente um instrumento de dominação das mulheres. Mesmo que hoje o direito entre os cônjuges seja igual, o casamento ainda é uma instituição herdada do código napoleônico e que por muito tempo significou o tutelamento das mulheres. Para ter acesso a um estatuto social a mulher tinha que ser casada, uma mulher solteira era uma “beata”, uma mulher incompleta. Certo, isso mudou. No entanto, é necessário que saibamos que formas de associação herdamos: libertadoras ou alienantes. Na nossa sociedade são os direitos do indivíduo que estão na base da constituição, e não os direitos do casal. Fundar os direitos no casamento é um retrocesso.

Qual a sua opinião sobre as pessoas que ainda se manifestam contra a extensão do casamento para todos os casais, pautadas no argumento do princípio do “interesse da criança”?

Que as coisas fiquem claras de uma vez por todas: este debate não está mais na ordem do dia. A lei já foi votada e devemos aceitá-la. Não vejo como o direito de uma criança poderia ser afetado por causa da extensão do direito ao casamento para todos os casais. Todo mundo é capaz de educar uma criança, qualquer que seja sua orientação sexual, homem ou mulher, isto é incontestável.

O que significa o princípio do “interesse da criança”, comumente oposto ao “direito à criança” ?

Não me posiciono nesta polêmica. Porém, fico preocupada quando percebo em alguns casais homossexuais um desejo de ter uma criança sem a participação do outro sexo. Para mim, foi a procriação que permitiu o diálogo entre os sexos. Precisamos do outro sexo para nos reproduzirmos. E, felizmente, porque caso contrário as mulheres teriam sido exterminadas. Temos sorte que a sociedade seja mista. As pessoas as vezes se assustam quando eu digo isto, mas sei que possuo um lado masculino, e eu o aceito. A sexualidade é parte de nossa identidade, mas não é tudo. Dizer que apenas a sexualidade nos define, dizer que “a única coisa que conta é com quem você transa”, e fundar uma solidariedade a partir disso, é comunitarismo.

Este enfoque nas crianças é preocupante?

O problema é o desenvolvimento de uma comercialização (que existe também para os héteros) em torno da RMA (caso o esperma seja de um doador anônimo comprado no exterior) e da barriga de aluguel, na qual a criança é tirada da mãe que a colocou no mundo; enquanto que, para a criança, é importante ter acesso às suas origens. Todos nós temos a necessidade de saber de onde viemos para nos construirmos. Devemos aprovar essa farsa de uma filiação monossexuada, quando sabemos da dor das crianças adotadas que desconhecem suas origens? Queremos autorizar os casais que têm recursos financeiros a recorrerem a mães de aluguel? Nestes casos qual o estatuto das mulheres, de reprodutoras? Devemos consentir que os corpos dessas mulheres sejam instrumentalizados? E como fica o ponto de vista da criança dentro desta lógica de mercado ultraliberal? A pesquisadora Françoise Dekeuwer-Défossez (2) coloca esta questão da seguinte forma: “A questão da conformidade entre a satisfação do desejo do adulto e o interesse superior da criança não poderá ser indefinidamente evitada”. É necessário que façamos um debate público sobre essa questão.

Voltando à questão do casamento para todas as pessoas, você acha que há tendência a uma normalização?

Absolutamente: a pluralidade, as diferentes maneiras de viver, tudo foi esvaziado. É como se no presente houvesse apenas um único caminho para o reconhecimento da homossexualidade: o casamento. No entanto, outras formas de convivência foram propostas. O Pacs (Pacto Civil de Solidariedade), em 1999, foi um avanço considerável. Mesmo que na época eu fosse sobretudo a favor da adoção de medidas que pudessem melhorar o reconhecimento da concubinagem… a qual aliás conseguimos incluir no código civil. O Pacs já seria o suficiente se acrescido de alguns ajustes como, entre outros, o desenvolvimento de direitos próprios e a reforma do direito à sucessão.

Eu sempre achei que ser lésbica era uma dádiva, na medida em que isto me colocava certas questões: do porquê eu prefiro mulheres, sobre qual a relação disto com as minhas características pessoais… Isto foi muito importante e permitiu que eu assumisse a minha diferença. Sempre achei que esta posição me conferia uma proteção bem mais eficaz que a instituição do casamento. O debate deve ser deslocado para esta questão, pois o que está em jogo aí é uma necessidade de proteção, sobretudo com relação à homofobia. Devemos ser capazes de nos protegermos sem sermos engolidos pela norma dominante. Com o casamento, o que temos é a vitória do modelo matrimonial heterossexual, a integração à norma pequeno-burguesa da dignidade conjugal. Uma vitória paradoxal, justo no momento no qual vários casais heterossexuais vivem fora desse modelo.

Você se declara perplexa frente à unanimidade relativa a esta questão, tanto entre os homossexuais quanto entre os grupos de esquerda.

Estive revendo os textos que escrevi sobre a união livre e contra o casamento, que datam de 2004, quando já havia uma ofensiva a favor do casamento. Trata-se da época em que publiquei ‘Qu’est-ce qu’une femme désire quand elle désire une femme?’ (O que uma mulher deseja quando ela deseja uma mulher?). A maioria das pessoas que se exprimiam não se interrogavam sobre a questão do desejo, mas eu não pensava que isto tomaria tamanha proporção. Nunca houve uma enquete dentro do movimento LGBT para saber o que as pessoas pensavam a respeito. É a pressão por parte de um pequeno grupo, sob o pretexto de lutar contra a homofobia, que acabou influenciando as demais pessoas. E, como os opositores da direita e da extrema direita são particularmente inquietantes, acabamos por nos encontrar numa oposição completamente artificial entre a favor/contra, esquerda/direita. Enfim, diante desse paradoxo inacreditável que fez com que o casamento passasse a ser uma causa da esquerda!

Como você analisa a evolução do movimento homossexual na França?

Os anos 1970 assistiram ao nascimento de um movimento homossexual criativo e generoso, agora contamos com um movimento normativo e comunitarista. Em um prazo de 40 anos passamos de um ideal de emancipação coletiva a uma moral jurídica do cada um por si. Os anos 70 foram a época da saída do armário. Tínhamos sido formados pelo Maio de 68, tratava-se de um movimento de luta contra as instituições, de uma revolução cultural, da qual eu participei com alegria.

O movimento de mulheres e o movimento homossexual emergiram simultaneamente, trilhamos parte do caminho juntos. Eu mesma fiz parte do MLF, fui co-fundadora do Fhar (que no início era composto por homens e mulheres e depois passaria a ser composto apenas por homens), depois do grupo lésbico Gouine rouges. Reconheço que lá éramos contra homens. Mas, ao mesmo tempo havia uma grande fraternidade com relação aos meninos do Fhar. Nós pensávamos que eles estavam do nosso lado, do lado do feminino; pois, assim como nós, eles tinham sido oprimidos.

Porém, com a chegada da AIDS, tudo mudou. Com a morte dos doentes seus companheiros eram expulsos de seus apartamentos. Por isto os homens passaram a se preocupar com a questão da proteção jurídica. O problema está na não transmissão dos valores da contra-cultura dos anos 70. O desaparecimento da intelligentsia gay por causa da epidemia da AIDS criou um vazio cultural que foi preenchido por juristas e pelo “familiarismo”, no qual nos encontramos ainda hoje. Para se defenderem, os gays criaram associações, uma grande família, e ainda hoje eles mantêm esse espírito de comunidade, como se corrêssemos o risco de sermos colocados na rua pelo fato de sermos homossexuais.

Hoje vivemos um terceiro momento, caracterizado pelo ultraliberalismo. Partimos do Fhar, onde os militantes vociferavam “proletários de todos os países, acariciai-vos”, ou “casamento é uma armadilha para idiotas”. Eis-nos agora aqui comprando esperma no exterior e recorrendo às mães de aluguel.

E a questão da igualdade?

Qual? O casamento para todas as pessoas significa igualdade entre casais homossexuais e heterossexuais, mas não entre casados e solteiros. Você reparou que nós nem mencionamos isso? O casamento foi feito para a procriação de crianças, o que justificava que os solteiros pagassem mais impostos. Mas e os casais (homossexuais ou héteros) que não têm filhos? Como justificar que paguem menos impostos que os solteiros? E, mais, creio que é o fim da filosofia Iluminista, cujo fundamento era o indivíduo e não o casal.

Quanto a igualdade entre homens e mulheres… O movimento feminista abandonou a demanda de igualdade entre os sexos, muito difícil de ser obtida, passando em 1999 a reivindicar a paridade, época em que Jospin (3) estava no poder.

Como explicar que o debate tenha sido boicotado?

Na verdade ele sequer começou. As lésbicas, por exemplo, mal puderam se expressar. Talvez por terem menos acesso à mídia. Elas mantêm um site onde se manifestam, refiro-me ao site da Coordenação Lésbica na França, no entanto, elas pouco dialogaram com os demais setores sociais. No mais, elas encontravam-se sobretudo divididas: algumas eram a favor do casamento, outras contra, outras estavam divididas. As lésbicas do Centre Évolutif Lilith de Marselha manifestaram-se contra. As mulheres da associação lésbica e feminista Bagdam de Toulouse também se manifestaram, posicionando-se a favor… por causa da homofobia.

Os grupos a favor do casamento tomaram como reféns as feministas, assim como os homossexuais que se posicionaram contra esse ideal pequeno-burguês. De um lado havia grupos de fato reacionários, e do outro falsos progressistas. Se nos situávamos fora desta bipolarização, éramos acusados de ser homofóbicos ou reacionários. O debate encontrava-se polarizado em dois lados. Meu livro apresenta-se como uma tentativa de dar vazão a um pensamento crítico que permita encontrar uma outra via.

Referências:

(1) ‘As Tecnologias da Reprodução: Discursos sobre a Maternidade e Paternidade no Campo da Reprodução Assistida no Brasil’ (.pdf). Autora: Fernanda Bittencourt Vieira. Tese apresentada ao Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília/UnB.

(2) Ver outras publicações desta autora: ‘Les droits de l’enfant’, Paris, PUF, 2010.

(3) Lionel Jospin foi Primeiro Ministro da França entre junho de 1997 e maio de 2002, sob o governo do Presidente Jacques Chirac, pelo Partido Socialista.

+ Sobre o assunto:

[+] Para uma resenha criticando vários dos pontos defendidos por Marie-Jo Bonnet, ver em francês: Adieu Les Rebelles ! de Marie-Joséphe Bonnet.