Texto de Tatiana Lionço.
Quem me conhece sabe que eu nunca fui de carnaval. Tenho fobia de multidão e detesto que me imponham ritmos e formatação à vida sexual. Amo montação, embora não dependa minimamente de festa datada para andar pela rua do jeito que eu bem entender, mesmo que pareça bizarra ou anormal. De qualquer forma reconheço a importância do carnaval e admiro a apropriação popular da ruptura da ordem do dia em praça pública.
Curiosamente há três anos eu puxo um bloco de carnaval com minha mana, Jul Pagu. Me meti nessa simplesmente porque o BLOCO DAS PERSEGUIDAS não é apenas um bloco de carnaval. Nasceu como ato político de resistência a perseguições morais que sofremos por sermos mulheres ativistas, por levantarmos bandeira feminista, anti-racista, anti-machista, anti-homofóbica, anti-transfóbica, anti-lesbofóbica, anti-moralista e anti-fundamentalista. O bloco é nossa ação direta anti-moral e bons costumes durante o carnaval. Nosso bloco é anti-naturalização das violências machistas corriqueiras durante o carnaval, e por isso todo mundo que já pulou carnaval com a gente sabe que no nosso território as mulheres não precisam ficar o tempo todo se defendendo, porque de cara já damos o tom e avisamos que quem manda ali somos nós, e que nossa regra básica é a defesa da alegria e a luta contra as opressões.

Nosso ato político em 2015 foi escandalosamente livre. Trouxemos para o centro da capital da república a Pagu Funk, a voz feminista da favela, ou seja, a marginália que rompe as margens. Trouxemos também Indianara, a voz das putas, vestida de DASPU divinamente, porque quem brilha sequer precisa de fantasia de carnaval. Escutamos sua marchinha de puta transrevolucionária. O povo na praça amou e respeitou, e a força do nosso bloco é exatamente essa: a gente impõe amor e respeito para toda a gente marginalizada e isso faz do nosso território uma zona autônoma temporária, um espaço de suspensão da violência cotidiana e banalizada.
Talvez o maior escândalo de todos, no grito das perseguidas de 2015, tenha sido o show da Drag Mackaylla. Ela realizou um concurso tradicional das boates gays, convocando voluntários para performar no palco e para que o público votasse na melhor apresentação. O resultado foi uma avalanche de espontaneidade e de jogação, de liberdade. Nenhuma “produção” realizaria o que se deu ali pela força do momento, pela intensidade das presenças e pela radicalidade do orgulho de cada um e cada uma que subiu no palco e se mostrou.
Tambores moveram corações durante horas, também escutamos o maracatu do Tamnoá, o côco da Martinha, levantamos estandarte e sustentamos a alegria. Depois que terminou, as pessoas ainda reverberavam alegria. Não houve confusão. As pessoas permaneceram ali, ecoando nossos tambores, nossos amores e nosso recado. Nosso problema foi que o governo chegou. A polícia agrediu. Nossos cheiros, sabores e suores dissipados pelo ardor do spray de pimenta. Nossos olhos marejados de lágrima, disfarçados de efeito do gás lacrimogêneo.
Eu gostaria de dizer que o BLOCO DAS PERSEGUIDAS vai continuar nas ruas, ano após ano. Nosso espaço é bem ali mesmo, na vizinhança da residência de deputados federais, mais ou menos a quinhentos metros da praça dos três poderes da capital da república. Sabe por que a gente não vai sair de lá? Porque nosso grito é uma resposta aos deputados que tem nos transformado em pedófila/os na internet, que nos abusam como exemplo de anti-cristo em campanha eleitoral.

Nosso grito é contra o poder, e por isso a polícia não nos amedronta. Não temos medo da polícia, não temos medo dos deputados e não temos medo do governador. Também não temos medo do secretário de segurança pública que veio falar conosco no dia seguinte à agressão de seus subordinados a toda a nossa gente. Não! Dissemos a ele que primeiro ele escuta o povo, e que só depois ele fala. Não sei se ele entendeu, pois acusou agressividade. Agressivo é o spray de pimenta da PM, violento é o Estado. Não são esses poderosos que irão nos dizer como é que devemos falar, muito menos quais as palavras que sairão da nossa boca.
O que me deixa feliz é que ano que vem terá mais grito, mais tambor e mais escândalo. Por agora, quero apenas agradecer a todas as pessoas que compartilharam presença conosco, que nos renderam sorrisos e escuta atenta às línguas afiadas das perseguidas. Somos más e podemos ser piores. Venceremos!
Autora
Tatiana Lionço é doutora em Psicologia, professora de graduação e mestrado em Psicologia do UniCEUB e membro-fundadora da Cia. Revolucionária Triângulo Rosa.
Esse texto foi publicado originalmente na sua página pessoal do Facebook em 16/02/2015.
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