Uma viagem pelo Oriente Médio e o meu senso comum

Texto de Cecilia Olliveira.

Passei o último mês viajando pelo Oriente Médio. Tenho uma amiga que mora em Beirute, Líbano, e minha primeira preocupação foi perguntar: o que levo pra vestir ai? A resposta dela: o mesmo que você vestiria aí, só que está frio. A surpresa pode vir ancorada no senso-comum-delineadamente-midiático que questiona: “Como assim lá é igual aqui”? Vários “eu acho” caem por terra, um a um, com a convivência e o interesse em saber mais de forma desarmada.

Sou feminista, cristã protestante e defensora árdua do “meu corpo, minhas regras”. Por mais que isso pareça contraditório, só o é pelo mesmo motivo que podemos achar que as muçulmanas e árabes são uma maça uniforme de oprimidas e opressores: o desconhecimento. Nada é uma massa uniforme. As cristãs não são todas fundamentalistas, nem árabes e muçulmanas são necessariamente opressores e oprimidas. Ter uma religião é uma opção que deve ser respeitada. As regras e dogmas que uma religião pode impor arbitrariamente e aleatoriamente é que devem ser questionadas.

Visitei a Universidade Americana em Beirute. Cheia de mulheres, uma escola particular caríssima. Vi ainda, por onde passei, mulheres dirigindo, levando crianças na escola, lotando as lojas dos Souks (Mercadões tipo Madureira e 25 de março), brincando entre ruinas históricas. A vida segue, cotidiana, com a religião e com suas convicções.

A viagem começou pelo Líbano, em Beirute. A cidade parece um misto de Rio de Janeiro e São Paulo: uma cidade cosmopolita com uma UPP em cada esquina. Com a “pequena diferença” de que eles enfrentaram uma guerra civil que acabou em 2006 e tem várias desavenças com Israel, que teima em tomar territórios de todos na região. Há muitas lojas como as da Oscar Freire numa área que é foco de gentrificação.

Nesta área, muito turística por ser praiana, a realidade é bem dicotômica: por um lado mulheres vestidas como as ocidentais que conhecemos, e por outro, parte da praia é coberta com um toldo para que quem passe de longe não aviste os corpos relativamente despidos na praia.

Orla de Beirute, Líbano. Março de 2015. Foto de Cecilia Olliveira no Flickr.
Orla de Beirute, Líbano. Março de 2015. Foto de Cecilia Olliveira no Flickr.

Mais roupa ao sul

Em viagem para uma cidade mais ao sul do país, chamada Sur – área onde o Hezbollah é oficialmente sediado (e onde o jargão “poder paralelo” faz sentido), a religiosidade é mais presente. É possível ver mais o xador, roupas femininas para muçulmanas, como um vestido. Mas vi mulheres vestidas de todas as formas: de calça jeans, blazer, de legging e a parte de cima mais comprida, cobrindo os quadris. Outras usam xador coloridos, estampados, com muito brilho. Sempre de hijab, o lenço sobre a cabeça. Algumas mulheres muçulmanas cobrem a face com um “niqab”, lenço que cobre todo o rosto, deixando a mostra somente os olhos. Mas vi poucas destas por onde andei (Palestina, Líbano, Jordânia, Israel).

Não vi nenhuma muçulmana usando burca, que cobre o rosto e os olhos, porém nos olhos há uma rede para se poder enxergar. Isto porque ela é usada pelas mulheres do Afeganistão e do Paquistão, e em áreas próximas à fronteira com o Afeganistão. Ela é um símbolo do Talibã, movimento fundamentalista islâmico, portador do ideal político-religioso de recuperar todos os principais aspectos do Islã (cultural, social, jurídico e económico), com a criação de um Estado teocrático.

Agora, o que me impressionou muito foi ver a quantidade de lojas de lingerie por onde passei. Cobrir o corpo não seria sinônimo de anulamento sexual? Não. Pelo que aprendi, em casa é outra coisa: você usa roupas comuns, não precisa necessariamente cobrir os cabelos e sim, você pode usar (e é estimulada!) roupas sensuais entre quatro paredes. Meu estranhamento foi ver que quase não há vendedoras mulheres nestas lojas.

Tiro, cidade do Líbano. Março, 2015. Foto de Cecilia Olliveira no Flickr.
Tiro, cidade do Líbano. Março, 2015. Foto de Cecilia Olliveira no Flickr.

Lá e Cá

Tudo isso pode parecer muito estranho e para alguns até assustador. O que é ainda mais estranho é que isso é seletivo, já que no Brasil achamos coisas muito similares.

Membras da Congregação Cristã Apostólica usam o véu durante os cultos. A igreja é segregada e homens e mulheres cultuam em lados diferentes do Templo. O mesmo acontece com os judeus que oram em frente ao Muro das Lamentações. O “cada um no seu quadrado” é bem comum em religiões monoteístas.

Já na Igreja Evangélica Assembleia de Deus dos Últimos Dias, as mulheres usam algo muito similar ao Xador. E assim como as muçulmanas, capricham nos adereços. Bolsas, sapatos são a chance de diversificar. Aqui no Rio de Janeiro esta igreja tem muitos fiéis.

Na Igreja Assembleia de Deus (sim, é outra igreja) o cabelo é considerado o véu. Então, as mulheres não o cortam. É o “adorno da noiva”. Elas usam também roupas mais compridas, sempre saias abaixo dos joelhos e nunca deixam o colo a mostra.

Eu cobri minha cabeça uma vez, quando estava em Al-Khalil (que conhecemos como Hebron) ao visitar a Mesquita Ibhraim (Mesquita de Abrãao), onde estão enterrados Abraão e Sara. Ali na porta ficam umas capas para que as turistas se cubram ao entrar.

Mercado em Al-Khalil (Hebron). Março, 2015. Foto de Cecilia Olliveira no Flickr.
Mercado em Al-Khalil (Hebron) na Palestina. Março, 2015. Foto de Cecilia Olliveira no Flickr.

Andanças

Depois de passar por Líbano, fui para Amã, Jordânia. Uma cidade pequena, muito movimentada. Pausa: Já na chegada invejei. Tinha uma loja enorme da IKEA. Amo badulaques de casa. Voltando: percorrendo a distancia entre o aeroporto e o centro fui observando aquela paisagem sem cor, seca. Coisa de cidade no meio do deserto. A grande maioria das casas são pintadas de branco, apesar da poeira do lugar.

Neste dia jantamos com um casal de amigos. Íamos ser apresentados à comida local. Chegou o casal. Cumprimentos verbais tranquilos, embora homem toque homem, mulher toque mulher. Nada de aperto de mãos ou beijinho. Eu particularmente prefiro. Odeio isso de beijar quando chega e beijar quando sai. Ainda mais em Minas, onde nasci, que são 3 beijinhos. Hoje moro no Rio e economizo um beijinho.

Meher é uma mulher paquistanesa, casada com um americano de ascendência árabe. Mudou-se para Jordânia após casar. Não pude ver seus cabelos (tenho fixação com cabelos. Adoro). Mas amei sua bolsa. Então ela me explicou que é designer de bolsas e que está abrindo um negócio que terá ramificações no Oriente Médio, Europa e Estados Unidos. Como ela soube que o Brasil tem grande tradição na indústria de couros, me pediu ajuda para mapear possíveis exportadores. Ela tira o celular da bolsa e começa a me mostrar os modelos que já estão prontos. Impressionante. Bolsas delicadíssimas, com muitos detalhes. Apesar de seu marido ser genuinamente americano, ambos tem muita dificuldade de entrar e sair dos EUA, assim como transitar por outros países devido ao cerceamento que árabes sofrem por imposições políticas. O mundo perde sem Mehers por aí.

De Amã, fomos para Petra. Que lugar, minha gente. Que lugar! Eu, que tenho eterna preguiça de exercícios físicos, andei cada palmo dessa cidade incrível, que fica num vale, no meio do “nada”. “Nada” entre aspas porque no meio das paredes de dezenas de metros de pedra tinha uma barraca com wifi.

Fiquei muito impressionada com a força das mulheres beduínas. Subir e descer aquelas montanhas de pedras e caminhar longas distancias pelo deserto não é pros fracos. Tive a sorte de estar ali no inverno e pegar cerca de 20 graus de dia. Não consigo imaginar a vida ali no verão. Os beduínos tem forte tradição de comércio. Assim sendo, por todo o caminho era possível ver mulheres vendendo de um tudo: colares, brincos, pulseiras, hijab.

Depois de Petra, passamos pelo Mar Morto. No hotel onde nos hospedamos havia muitos “tipos” de mulheres. Biquínis de meio palmo, como o meu, maiôs, biquínis maiores e conjuntos de natação para muçulmanas. São como agasalhos de corrida, de marcas como adidas mesmo. Lembrei de quando era adolescente e ia nos acampamentos da igreja (Batista, à época) e as senhoras mais velhas entravam na piscina de camisa e bermuda. Eu achava estranho, mas se para elas estava ok, para mim também estava. Não gosto da ideia de isso ser imposto, apenas.

Dali ia começar a parte que eu estava mais ansiosa. Finalmente, Palestina! Mas me incomodava demais ter que solicitar entrada à Israel. (Suspiros profundos de desgosto). Chegando na fronteira entre Jordânia e a Palestina Ocupada – onde fica a base militar israelense, um alivio: chegamos no último ônibus antes de fechar a fronteira. Momentos de apreensão porque eles são chatíssimos para dar vistos de entrada. Depois de quatro horas, fomos liberados. Consegui meu visto relativamente fácil. Mas meu namorado, jornalista, americano e usando um segundo passaporte, não teve a mesma sorte. Foi levado para uma sala onde foi novamente entrevistado e questionado. Ok, liberados.

Finalmente fora daquele ambiente hostil, rumo à Palestina. Pegamos a ultima van para Jerusalém. Ao nosso lado, Fida, uma jordaniana que vestia xador preto e hijab amarelo com pedrarias nas pontas. O xador também tinha muitos brilhos na região do peito. Fida se dividia em duas. Morava 6 meses na Jordânia e 6 meses na Palestina ocupada. Ficamos amigas na van, enquanto ela contava em meio a mímicas sua vida.

Como o árabe era mais que o inglês, a gente se falava por fotos. Ela mostrou casa, família, os pratos que cozinhava. Disse que a filha dela está na faculdade, cursando enfermagem. Tirou da bolsa um lenço, jogou seu perfume e disse que era pra eu me lembrar dela. E que se precisasse, poderia ficar com a família dela. Dei para ela um creme que tinha na bolsa, feito de cupuaçu. Bem Brasil para ela. Quando desceu em Jerusalém, muitas malas vindas dos 6 meses de vida na Jordânia. Tirou da mala um par de meias e me deu também.  Quando aceitei a solicitação dela no Facebook, minha primeira alegria foi ver o compartilhamento da Página Feminists Of Jordan. Apesar de não entender árabe, pude ver os símbolos da resistência. Coisa linda de ver!

Estar na Palestina me fez olhar o cristianismo, as pessoas e o mundo por um novo ângulo. Me senti minúscula, impotente, oprimida. Me senti uma pessoa branca nos Estados Unidos de 1960, 70, tamanho o privilégio em que me sentia inserida. Eu podia andar por onde árabes não podiam. Podia cruzar check points que eles não podiam. Os check points são Barreiras militares dentro da Palestina ocupada onde soldados judeus (de qualquer nacionalidade) impedem o ir e vir de árabes, justificando “segurança”.

Apesar de todo o mal estar que sentia ao cruzar estes lugares, fiquei levemente aliviada ao avistar duas mulheres e um homem, fotografo, ao passar em um check point em Al-Khalil. Eles são parte da Christian Peacemaker Teams – Palestine e ficam ali para flagrar abusos e arbitrariedades cometidas pelos soldados e auxiliar palestinos a lidar com a situação.

Vida longa às mulheres árabes. Vida longa e livre à Palestina.