Texto de Pamela Sobrinho para as Blogueiras Feministas.
Quando se fala sobre estupro, no imaginário coletivo de nossa sociedade imagina-se uma mulher de roupas curtas, saindo de um baile funk, no meio de uma favela, de madrugada. Para nossa sociedade, essa é uma mulher que procura ser estuprada. Essa mulher procurou o estupro e deve ser demonizada por isso.
Entretanto conforme dados do 9° Anuário Brasileiro de Segurança Publica, os dados diferem do imaginário machista coletivo, 88% das vitimas são do sexo feminino, 70% são crianças ou adolescentes e o mais alarmante é 24% dos algozes são o pai ou padrasto e 32% dos algozes são amigos ou conhecidos, ou seja, o perfil das vitimas é bem diferente do que se imagina, e esses são os dados registrados:
“Segundo dados do 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2014, 47.600 pessoas foram estupradas no Brasil. A cada 11 minutos alguém sofreu esse tipo de violência no país. Esse número pode ser ainda maior, pois a pesquisa só consegue levar em conta os casos que foram registrados em boletins de ocorrência – estimados em apenas 35% do montante real. Estamos falando de outros 65% que nem sequer entram nas estatísticas.”
Isso acontece porque a maioria das vitimas não denuncia, já que seu agressor geralmente é alguém conhecido.
Existe outro tipo de estupro pouco falado, aquele praticado por maridos/namorados/companheiros. Segundo a Lei Maria da Penha:
“Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
[…]
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.”
Ou seja, o ato praticado por um companheiro também se configura estupro, mesmo que na “cabeça” das pessoas a mulher seja “obrigada” a satisfazer o seu companheiro. Conforme explana Damásio de Jesus(1):
“Entendemos que o marido pode ser sujeito ativo do crime de estupro contra a própria esposa. Embora com o casamento surja o direito de manter relacionamento sexual, tal direito não autoriza o marido a forçar a mulher ao ato sexual, empregando contra ela a violência física ou moral que caracteriza o estupro. Não fica a mulher, com o casamento, sujeita aos caprichos do marido em matéria sexual, obrigada a manter relações sexuais quando e onde este quiser. Não perde o direito de dispor de seu corpo, ou seja, o direito de se negar ao ato sexual […]. Assim, sempre que a mulher não consentir na conjunção carnal e o marido a obrigar ao ato, com violência ou grave ameaça, em princípio caracterizar-se-á o crime de estupro, desde que ela tenha justa causa para a negativa.”
Esse tipo de ato se configura nos relacionamentos abusivos, é algo muito comum em nossa sociedade, porém pouco discutido e pode deixar consequências graves para a vitima.
Mas agora vou parar de falar de números, dados e estatísticas. Vou falar de algo real, minha própria experiência.

Não é fácil falar, não é fácil colocar a cara no mundo e dizer que vivi um relacionamento abusivo e sofria estupros constantes, não é fácil encarar que por longos anos achei que essa era minha obrigação, servir meu ex-companheiro, não tinha a dimensão que isso era estupro.
Por várias vezes eu me perguntava se era aquilo mesmo namorar, mas a pouca experiência e por não poder conversar sobre esse assunto em casa, acabei achando aquilo ‘NORMAL’.
Não começa sendo agressivo, para descrever a experiência, começou com as pressões, com “se você não fizer tem outras que vão fazer”, e você vai lá e faz, e dói, e machuca, mas você está lá. Depois vêm as “fantasias” humilhantes que você não quer realizar, mais aí vem novamente à ameaça “se você não fizer tem outras que vão fazer”. Depois começam as humilhações ao seu corpo, às comparações com as outras mulheres, os comentários de como as outras mulheres são melhores no sexo do que você, como você é tão “desprezível” que nenhum outro homem vai te querer ou como ele é o melhor homem do mundo e você nunca vai encontrar alguém melhor.
Sua autoestima e sua pouca experiência fazem com que você “ACEITE” tudo, o seu medo e sua vergonha fazem com que você não compartilhe com ninguém o que esta vivendo.
Depois de um tempo ele tem certeza que tem domínio sobre seu corpo, e passa a trata-la como um “depósito” de sêmen, ele acorda a noite, vira você e se satisfaz, simples assim, sem nem mais te falar nada, apenas te tratando como objeto, e o que você sente é justamente isso, um objeto sem corpo, sem vontade, sem espirito. Alguém que já morreu em vida, mas vai piorar, porque a próxima vez ele vai realizar fantasias mais sádicas, mais humilhantes, vai te fazer sentir pior do que o pior ser humano, e você vai tomar banho querendo tirar ele do seu corpo.
Mas você não sabe bem o que esta acontecendo, o seu fundo do poço é tão profundo e seu pouco conhecimento é tão grande que você não sabe se isso é certo. Espero que não me julguem, porque eu ainda me julgo todos os dias por ter aceitado isso, por não ter ido embora, por não ter contado para ninguém. Mas esse ainda não é o pior, o dia mais terrível da minha vida, foi o dia que ele me imobilizou e me bateu no rosto até ele ficar vermelho, manchado de roxo, com os lábios cortados e os olhos inchados de tanto chorar e implorar para ele parar, e quanto mais falava mais ele se excitava, me penetrando varias vezes, com toda a força e me espancando, no fim, ele foi para sala e dormiu. Eu chorei a noite toda, no outro dia vieram às desculpas que se excedeu e que achou que eu estava gostando.
Não tinha mais forças para revidar, para questionar, para dizer que eu odiei. Não tive forças para dizer que eu estava toda machucada e cortada. Não só fisicamente, mas minha alma estava morta.
Após algum tempo de terapia, e digo que não tive coragem de contar para minha psicóloga o que estava acontecendo. Eu estava conseguindo criar coragem e sair dessa relação abusiva. Com meu comportamento mudando ele percebeu o movimento, não tínhamos mais relações sexuais, ele perdeu o interesse no meu corpo morto quando a minha mente começou a se elucidar, quando ele notou que eu estava tendo lampejos de consciência de que aquilo era errado, quando eu não mais admitia os comportamentos abusivos, os comentários ofensivos ou mesmo quando revidava as comparações com outras mulheres. Neste momento ele percebeu que estava perdendo o controle sobre este corpo, e resolver sair, terminar.
O que senti? Um alivio, pois confesso que tinha medo de terminar com ele.
O que aconteceu depois? Inúmeras sessões de terapia, coragem de contar para ela o que acontecia, força que ela me passou para contar para mais pessoas, ajuda da minha irmã e da minha amiga para desabafar, apoio do feminismo, vontade de contar para mais pessoas, a descoberta de várias outras mulheres que sofrem ou sofreram o mesmo que eu.
Das consequências? Ódio ao meu corpo, medo de me relacionar novamente, frigidez, baixa autoestima, nojo de mim mesma, ainda sinto o corpo dele no meu, ainda sinto o cheiro dele, ainda tenho crises de choro, ainda sonho com ele, às vezes relembro desses momentos, me sinto objeto.
O que eu espero daqui para frente? Foram longos seis anos num relacionamento assim. Espero que com a terapia e apoio possa ter uma vida normal. Mas, é um dia de cada vez, é página por pagina, agora no meu momento, hoje estou só, mas feliz, porque depois de muito tempo, tenho certeza que meu corpo é só meu, e só poderá por a mão nele quem eu autorizar.
Por que eu quero falar sobre isso? Porque milhares de mulheres vivem o que eu vivi e não sabem que isso está errado. Porque elas, assim como eu não tem ninguém para falar. Porque elas acham que porque estão com um companheiro devem satisfazê-lo. Porque esse assunto é tabu, porque ainda dói e sei que se eu fizer algo bom por outra mulher, talvez ajude a aliviar, são tantos porquês, só espero ter ajudado mais alguém, obrigada por tudo.
Referência
JESUS, Damásio E de. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 96.
Autora
Pamela Sobrinho é economista no Sistema S, editora na revista Betim Cultural, blogueira, mulher, feminista, sem denominações religiosas, mas amante do respeito e da igualdade. Escreve no blog: O que há por trás da Economia. Twitter: @pamsobrinho.