O estado de sujeição da mulher como um discurso de consentimento para crimes e violência de gênero

Texto de Tamires Marinho para as Blogueiras Feministas.

Ao se examinar as estruturas que fundamentam relações de desigualdade e até de barbáries cometidas contra minorias, sejam, justificadas devido a sua etnia, gênero, classe ou religião, o que se observa é uma tendência de desumanizar o sujeito através de práticas discursivas, como se direitos simples, defendidos desde o contrato social de John Locke não se aplicassem a eles, e, assim sendo, qualquer atitude reguladora seria perfeitamente justificável. Portanto, para compreender como ocorreu o consentimento da sociedade para crimes e violência contra a mulher, é imprescindível o entendimento de certos pressupostos que estruturam as relações de poder e submissão entre o homem e a mulher.

A primeira afirmação importante é que a sociedade é em sua maioria patriarcal. O patriarcado é uma organização familiar que posiciona o pai de modo hierárquico — a mente nuclear. Instalou-se com o advento da propriedade privada acercando-se e se enraizando através de discursivas que o mantiveram até a contemporaneidade. A subjetividade feminina não se tornou um evento singular devido à hierarquia pautada pela condição masculina construída na afirmação de que este sexo era o dominante. As mulheres foram convencidas de que seu lugar social era de subordinação, discursiva fortalecida pelas instituições, tais como, a religião, a família e o próprio estado que serviram de apoio para sua expansão.

Simone Beauvoir sublinha que o estado de sujeição da mulher ocorre exatamente no momento que se passa a ter consciência da propriedade privada, uma vez que, segundo a autora, nas sociedades ditas primitivas conferia-se a mulher o titulo de única progenitora, fato que lhe trazia autonomia diante da natalidade. A mulher exercia atividades de coleta importantes para a manutenção do grupo, o que sublinhava uma igualdade de funções sociais. Para Beauvoir, ocorreu um processo de coisificação, onde a mulher deixa de ser indivíduo e se torna também propriedade do pai ou do marido, assim como a terra, os filhos, os animais e os escravos.

Dentro desta perspectiva, a mulher não é o sujeito ou o sexo feminino, mas sim é o outro sexo. E ser o outro não é uma condição natural. Mas, sim uma construção cultural. No entanto, após um exame minucioso das fontes bibliográficas é possível partir dos pressupostos teóricos de Simone Beauvoir para analisar a construção sociocultural das normas que rodeavam o cotidiano da mulher brasileira. E, perceber como a cultura patriarcal construiu através de sua discursiva, padrões de comportamento, privilegiando o homem. Uma vez que a história foi escrita fundamentalmente por homens, desde filósofos, médicos, políticos, juristas, há pais, maridos e padres. Os homens detinham o saber, e quem tem saber, tem poder (FOUCAULT, 1963, P.43).

Portugal traz em suas caravelas para o Brasil do descobrimento este modelo de estrutura familiar, o patriarcado. A mulher era, consequentemente, um indivíduo sem expressão, anulado das decisões familiares e da sociedade monarquista da época. A organização familiar tinha como função preservar o poderio econômico dentro de um mesmo grupo sanguíneo. Para tanto, exigia-se da mulher uma sexualidade rigorosamente preservada, dado que, ela seria a progenitora dos herdeiros. Por este motivo, tornou-se indispensável estabelecer relações monogâmicas e supervalorizar o papel de esposa e mãe, transformando a fidelidade feminina em virtude essencial, com risco de duros castigos para quem se desviasse da norma.

Dentro destas perspectivas, a legitima defesa da honra torna-se uma discursiva justificável. Uma vez que, essa opressão sexual tem apoio legal no código civil de 1916, onde se demonstra uma clara preocupação com a virgindade feminina. “Art. 129 – considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge: IV. O defloramento da mulher, ignorado pelo marido”. Para Friedrich Engels, baseado nas teorias de Lewis Henry Morgan (1818-1881), isso implicava que a mulher guardasse castidade, mantivesse a fidelidade conjugal rigorosa e tolerasse a infidelidade do marido. Afinal, na visão deste último, a mulher era a mãe dos seus filhos legítimos e herdeiros. E deste modo se organizava a família patriarcal, onde a mulher ficava sob o domínio do macho, do patriarca, da família tradicional, do discurso da igreja, da ciência e da moral. Enquanto solteira era propriedade do pai, após o casamento assumia a família e o sobrenome do marido, não tinha acesso à cultura ou qualquer tipo de instrução, não possuía voz no grupo social e muito menos participação política.

O sistema patriarcal busca meios de se justificar no meio social através de discursos para se auto afirmar e garantir sua continuidade, sendo a maneira mais eficaz de justificar a ideologia que se alimenta desses valores com os discursos, contribuindo de forma forte e decisiva para a construção da noção do que é ser homem ou ser mulher. Desse modo, uma incapacidade natural da mulher foi legitimada por discursos religiosos, científicos, filosóficos e históricos.

Aristóteles defendia que a mulher era um homem incompleto. Rousseau (GASPARI, 2003, p. 29) detinha um discurso de que a educação feminina deveria ser restrita ao doméstico, pois, segundo ele, elas não deveriam ir em busca do saber, considerado contrário à sua natureza. Kant (GASPARI, 2003, p. 31) usa um discurso sexista ao descrever sobre a mulher e seu viver para o homem, não a reconhecendo enquanto sujeito atuante da história. Foi influenciado por Rousseau ao utilizar a ideia de inferioridade feminina com relação à sua incapacidade de raciocinar como o homem, reforçando a ideia de inferioridade feminina. Nietzsche considera a mulher como “ser” fracassado que busca elevar-se alterando seus padrões próprios de conduta na sociedade. Dá ao homem a responsabilidade de manter a mulher dependente e sob seu domínio. Assim, ele entende que o homem tem de “conceber a mulher como ‘posse’ como propriedade a manter sob sete chaves, como algo destinado a servir e que só então se realiza” (NIETZSCHE, 1992, p.143).

Dentro da dogmática cristã, a mulher fora criada pela parte do corpo anatômico de um homem, e com o objetivo de lhe servir de companhia. A bíblia explica a sua submissão como um castigo por ter levado o homem a pecar. “Em dor dará filhos; e o teu desejo será para sempre do teu marido, e ele te dominará” (BIBLIA, cap.3). A desmoralização da mulher começa com a Eva traidora, pecadora, falsa, traiçoeira e fraca. Vale sublinhar a influência da igreja católica para a corte portuguesa respaldando na colônia.

No discurso jurídico não seria diferente, uma vez que, ele é formado por valores morais, patriarcalistas e religiosos. A moral, sobretudo, é uma forma de conter o sujeito. Portanto, ao analisarmos as ideias dos pensadores mencionados, fica evidente que uma característica marcante foi a de pensar a diferença feminina acentuada pela inferioridade, baseada no direito natural. No imaginário destas figuras, não havia necessidade alguma de conferir à mulher um estatuto político, pois para esta ideologia, o homem era a causa final da mulher. Desse modo, construíram-se verdades que se propagaram com força de evidencia. Evidencia-se, que não nos cabe criar juízo de valor ou cometer anacronismos acerca de valores divergentes dos contemporâneos, no entanto, objetiva-se salientar como o discurso é forte o suficiente para vencer o tempo, e ser resgatado mesmo que com outras dinâmicas na década de 1970. Por conseguinte, a mulher era uma propriedade do homem, e como tal, era tanto por vias legais como morais, compreendido e até esperado que ele lhe regulasse.

Referências:

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o pas- sado. Bauru: Edusc. 2007.

BEAUVOIR, S. O segundo sexo – a experiência vivida. (S. Milliet, Trad.). São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1960.

BERALDO JUNIOR, Benedito Raymundo. Legítima defesa da honra como causa excludente de antijuridicidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 367, 9 jul. 2004.

BÍBLIA. Bíblia sagrada. Velho e novo testamento. São Paulo: Maltese, 1962.

BOURDIEU, P. A dominação masculina. São Paulo: Educação e Realidade, 1995.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Bra- sil, de 05 de outubro de 1988.

BRASIL. Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916. Código civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2000.

CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio deJaneiro (1918-1940). Campinas: Unicamp, 2000, pp. 39 e 40.

ELUF, Luiza Nagib. A paixão no Banco dos Réus: casos passionais célebres de Pontes Visgueiro a Pimenta Neves. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2001, e, do mesmo autor, A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: PUC/Nau Editora, 2001.

HOBSBAWN, E. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002

HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portu- guesa. 2 ed. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1996

Autora

Tamires Marinho é apaixonada pelo comportamento humano e pelos conhecimentos empíricos da vida. Clarice Lispector é meu lado escritora, Darcy Ribeiro me faz socióloga, Beauvoir é minha militância. Escritora amadora, psicóloga mal formada e historiadora em desenvolvimento. Me orgulho, defendo tudo que sou e acima de tudo: Sou mulher!

Créditos da imagem: Acredita-se que “O Guía de la buena esposa: 11 reglas para mantener a tu marido feliz”, foi publicado na Espanha em 1953.