Texto de Juliana Romão para as Blogueiras Feministas.
A mulher política vive uma invisibilidade linguística que acompanha a sua baixíssima participação nos espaços de poder. Seu lugar político é real, mas não nomeado pela língua. É como se não existisse, vagasse fantasmagórica. A não-pessoa que ocupa um não-lugar. Os dicionários cantam a pedra: político é tanto o substantivo masculino que nomeia o “homem de Estado; pessoa que tem responsabilidades de ordem política” como o adjetivo, “aquilo que pertence ou diz respeito à política, aos negócios ou ao exercício do poder”. A política, que numa simples flexão de gênero deveria identificar a mulher atuante na vida política (como aqui a chamaremos) é referida apenas como substantivo feminino indicando “a ciência ou arte de governar”. A imagem mental é precisa: político é o homem que está na vida pública; política é aquilo que se faz na vida pública. E quando é a mulher quem faz política?
Dificilmente crianças ‘visualizarão’ políticas negras, com deficiência, indígenas, LGBTs, idosas ou mesmo brancas neste lugar que nem o sábio dicionário (re)conhece. Na maioria dos casos, a gramática responde com a classificação comum de dois gêneros, quando uma única palavra cabe ao feminino e ao masculino, variando no determinante de acordo com o gênero, como na palavra indígena: “a indígena/o indígena – a político/o político”. Em outros, qualifica como sobrecomum, em que um único termo representa os gêneros, como nas palavras ‘criança’ ou “indivíduo”. Flagrantemente, nenhuma dessas fórmulas nos servem.
As propagandas da justiça eleitoral brasileira acompanham o tom androcêntrico. Não há, por exemplo, eleitoras. Todas nós (52% da população) somos inseridas, sem autorização, dentro da palavra masculina eleitores. A mesma perspectiva está na menção aos cargos, todos referidos no masculino, com ares de previsão do futuro. “Os eleitores votarão primeiro para deputado federal”, indica uma mensagem do TSE, que se repete na orientação do voto para ‘senador’ ‘governador’, e ‘presidente’. Não há governadoras candidatas ou será que o Tribunal já sabe que só homens vencerão nas urnas?
O fato é que existe uma colossal resistência em reconhecer devidamente a presença das mulheres nestes espaços e aceitá-las como atrizes do debate político amplo. Numa reação que só mantém o estado de coisas — 90% de ocupação masculina nas vagas legislativas — o tema da invisibilidade linguística é tratado como “mimimi” (a mais simbólica e escancarada das faltas de argumento em qualquer debate) ou justificado como cansaço em dizer as ‘mesmas’ palavras no masculino e no feminino. Não se trata de repetição, no entanto. Nem duplicidade, já que duplicar é fazer uma cópia igual a outra e esse não é o caso. Ninguém acha, por exemplo, que falar da cor roxa é falar também da amarela, da laranja ou da verde. Todas são cores, mas cada uma precisa de um nome específico para compor o mapa mental em conexão com uma representação no mundo real.

Estamos falando de um direito humano fundamental, que é o direito ao reconhecimento da própria existência, pedra mestra da formação identitária. Ter um nome é adquirir humanidade, é pertencer. Uma prerrogativa constitucional assegurada às mulheres, aos homens, às pessoas LGBTI e a toda a humanidade. Não se trata de criar diferenças, apenas de nomear o que já existe no mundo, num movimento democrático, inclusivo e socialmente justo. Só visualizaremos a política quando a reconhecermos em seu lugar sociolinguístico.
É este o movimento da linguagem, marcado por sua potente capacidade de mutação e de representação das coisas, pessoas, sentimentos, conceitos. A cada novo elemento social, uma nova palavra-explicação ganha vida, num bailar entre língua e sociedade. A primeira deputada federal brasileira, Carlota de Queirós, foi eleita em 1933 e 85 anos depois dessa ruptura histórica a mulher política ainda não vê, nem na palavra, a ressignificação da sua profissão e atuação política. Se a inexistência do gênero no Congresso explicava a ausência do nome correspondente, essa desculpa está atrasada em mais de oito décadas.
Na linguagem e nas instâncias de poder, a política é ocultada pelo masculino, que o ‘padrão’ gramatical androcêntrico utiliza como gênero e também (falso) genérico, como se o homem fosse medida de toda a humanidade. Quatrocentas candidatas ao lado de um candidato são identificadas como “eles” nos livros, na mídia, nas leis, nas escolas, na gramática, na política e na conversa cotidiana. Um reflexo bem óbvio do histórico sistema patriarcal, que centrou no homem o poder de comando sócio-econômico-político. Essa herança marca as narrativas, que se naturalizam masculinizadas e inquestionadas como dogmas divinos.
A Comissão Assessora Sobre Linguagem do Instituto da Mulher (Espanha), na sugestiva obra chamada Nombra, já criticava em 1995 o costume do uso assimétrico no tratamento das pessoas. “Usar o masculino para refletir uma mulher, ou um grupo de mulheres, ou um grupo misto é um hábito que no melhor dos casos esconde ou invisibiliza as mulheres, e no pior, as exclui do processo de representação simbólica que põe a língua em movimento”. Institucionalizar esse apagamento é naturalizar privilégios e perpetuar desigualdades.
Como ato político, é urgente que giremos a engrenagem da língua para nomear a difícil mas irreversível caminhada de participação, presença e protagonismo da mulher no lugar de poder. Política é a mulher ou pessoa identificada com o gênero feminino que atua na política e também é “a ciência ou arte de governar”. Reivindiquemos esse confronto com a ‘norma’, que impede a coexistência e teima em explicar a realidade a partir de uma perspectiva única. Quando os recursos gramaticais, sintáticos e semânticos disponíveis não forem suficientes para nomear as diferenças vamos criar novas fórmulas, possibilidades de equilíbrio e visibilidades em nome e pessoa. Nesta militância, me coloco sempre ao lado da escritora e linguista costarriquenha Yadira Calvo: “prefiro pecar contra a gramática do que contra meus ideais”. Transformar a linguagem é transformar a sociedade.
Autora
Juliana Romão é jornalista, mestra em comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), professora de Jornalismo na Uninassau (PE), membra da PartidA e da Campanha Meu Voto Será Feminista.