Perseguidas nos uniremos?

Texto de Tatiana Lionço para as Blogueiras Feministas.

Precisamos falar sobre perseguição política no Brasil hoje e como isso tem relação com nossa tarefa coletiva de construção de narrativas singulares, mas visando a perspectiva compartilhada do que se passa conosco, pessoas em múltiplas condições e que estão de algum modo se sentindo ameaçadas e buscando alianças para construir direções para a resistência.

A lei da anistia precisa ser revista, pois o acordo realizado para a retomada do processo democrático no Brasil determinou que nossa democracia seria condicionada por uma quebra irremediável. A decisão pelo não julgamento e punição dos crimes de perseguição política, envolvendo assassinatos, torturas e desaparecimentos de pessoas, ocorridos durante a ditadura militar brasileira, impede a elaboração de acontecimentos sinistros na história social do nosso país, nos impondo a condição do trauma político. O acordo que inaugurou o processo de redemocratização do país, portanto, condicionou nossa democracia à precarização de nossas possibilidades de ressignificação da história nacional, impedindo que pudéssemos reconhecer coletivamente os limites que não deveriam ter sido ultrapassados, movendo novos acordos simbólicos para a vida social e política. O trauma, em uma perspectiva psicanalítica, consiste na impossibilidade de elaboração simbólica de um acontecimento, que passa a se engessar na atualização de si, escapando às possibilidades de temporalização, de assimilação a uma malha de significações que pudessem organizar sentido sobre o que se passou para assim historicizar o acontecimento. Neste sentido, o trauma impede que o acontecimento se temporalize na lógica de tornar-se passado, mantendo-se atual como o excesso que extrapola os recursos disponíveis para sua narrativa em uma produção de sentido historicizada, que permita o reconhecimento de uma nova condição atual a partir da qual se construiria, portanto, novas direções de futuro.

O que ocorre quando a pessoa que ocupa o cargo de Presidente da República propõe a comemoração do golpe militar que levou à ditadura, na lógica da celebração de uma revolução contra a implantação de uma suposta ditadura comunista no Brasil, é a deslegitimação da memória e da história vivida por sujeitos que reivindicam o reconhecimento das violações decorrentes do regime militar ditatorial de extrema direita. É importante notar que tal arroubo extremista não se reduz a mera opinião pessoal de Jair Bolsonaro, mas de pronunciamento do Presidente da República Federativa do Brasil. Para além deste singular pronunciamento, sabemos também que tal versão sobre o acontecimento de 1964 sob a ótica de Jair Bolsonaro também implica, para a atual gestão, projetos de revisionismo na educação básica por meio da alteração de conteúdos dos materiais didáticos, impacta a agenda internacional por meio das concepções olavistas de Ernesto Araújo sobre a necessidade de defender os verdadeiros valores ocidentais contra o que eles entendem como globalismo comunista. Cito apenas alguns exemplos de como o disparate do capitão teria mais do que a intencionalidade de manter o foco da mídia nas suas polêmicas morais, decorrendo, caso o governo implemente de fato políticas públicas afeitas a tais perspectivas políticas, em mudanças significativas na formação cidadã e na política internacional.

Como resposta à ânsia celebrativa da tortura e da detenção arbitrária de opositores políticos expressada pela presidência como uma suposta revolução anti-comunista, não apenas procuradores gerais da república alegaram que Jair Bolsonaro teria incorrido em crime de responsabilidade por apologia da destituição das instâncias democráticas, mas cidadãs e cidadãos opositores à atual gestão manifestaram publicamente sua necessidade de retornar ao básico: à afirmação de que houve ditadura, à afirmação de que houve tortura. Ou seja, retorna-se ao acontecimento, que não cessa de se atualizar como chaga aberta, exigindo elaborações de sentido que, enquanto ausentes, o impedem de se tornar passado. Segue-se daí não um processo sério de debate coletivo, mas uma guerra virtual memeficada, onde, de um lado se alega que o acontecimento aconteceu, e do outro, que o processo oficial que levou ao reconhecimento das evidências que dispomos para alegar veracidade para os crimes de tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados, a Comissão Nacional da Verdade, seria complô marxista globalista para desqualificar a luta direita por meio de fake news, uma sequência de mentiras de terroristas comunistas para angariar vantagens econômicas na forma de indenizações. Felizmente pudemos assistir a um levante popular, a tomada das ruas em protesto contra não apenas as declarações de Jair Bolsonaro sobre 31 de Março de 1964, mas para fazer entender que o luto faz luta, em defesa da memória dos que não estão mais entre nós mas que lutaram para que pudéssemos voltar às ruas. Protestos contra a ditadura, contra o autoritarismo, contra o abusivo uso da força, contra o silenciamento da oposição política, contra a má-fé.

Marielle Franco. Queremos saber quem mandou matar Marielle Franco. Marielle tem a potência de aglutinar os gritos de reivindicação de justiça para ativistas que defendem não apenas a democracia em nosso país, mas que lutam contra a retórica da permissividade colonialista, escravista, misógina, racista, que teve na ditadura, e tem até hoje, a petulância de nos propor ordem e progresso, à custa de nosso silenciamento sobre nosso desejo por desorganizar este sistema e interromper a perversidade do que chamam de progresso. Queremos que se desorganize este sistema de poder patriarcal, racista e colonizador, queremos também que o avanço neoliberal de exploração e depredação de nosso patrimônio material e imaterial seja interrompido, e que seja inaugurada uma era neste território colonizado em que possamos finalmente exercer humanidades exterminadas pela ganância supremacista colonizadora. Queremos que Marielle possa ecoar, a partir da força de resistência em torno desta execução – sintomática do retorno do acontecimento traumático – nossos nomes, outros nomes, muitas histórias, pois deixaremos muitos rastros que não poderão ser apagados. Precisamos falar e lembrar que também Dilma Ferreira da Silva foi assassinada por sua luta em defesa das populações atingidas por barragens, e lembremos ainda que ela não foi a primeira, pois antes dela perdemos Nilce de Souza Magalhães, que lutava pela mesma causa. É de se notar que a maior parte de pessoas exterminadas por motivos políticos no Brasil sejam relacionadas a lutas em defesa dos direitos à terra e os direitos ambientais, notoriamente com variadas execuções de lideranças do Movimento dos Sem Terra e indígenas.

Não podemos apenas falar sobre extermínios. Não podemos esperar que as pessoas morram para reivindicar reconhecimento de que há perseguição política em curso. Há pessoas vivas em situação de insegurança, mas paradoxalmente não nos é permitido pensar sobre insegurança neste momento político de apologia do Estado de segurança. Sequer o extermínio brutal de uma vereadora crítica à violência e corrupção policial, consumado no centro do Rio de Janeiro, comove a sociedade brasileira como um todo rumo a um processo coletivo de reflexão e construção de medidas concretas diante da atualidade da desmesura do uso abusivo do poder (incluindo aí o da força da milícia) na imposição de seus interesses. Me preocupo pois mesmo diante de um levante internacional clamando por justiça em nome de Marielle Franco, convivemos com autoridades públicas a fazer chacota da execução, a forjar inclusive moldura para a exposição da destruição da afirmação popular de sua indestrutível potência. Temos que entender qual é a nossa potência e como torná-la indestrutível também.

Tenho me preocupado bastante com a banalização do silenciamento, especialmente em tempos como este em que nos encontramos. Muito me preocupa a banalização da perseguição política. O que as pessoas condicionam à perseguição política para que a reconheçam enquanto tal? Precisam de corpos exterminados por fuzis? Ou precisam que os políticos aos quais se opõem sejam os mandantes dos crimes contra os sujeitos atingidos pelos crimes com fundamento em divergência política? Há partidarismo na compreensão do que seja perseguição política? Sujeitos desfiliados de partidos políticos embora engajados em lutas pela garantia de direitos também poderiam ser perseguidos politicamente? Quem os defenderia?

Sabemos que no Brasil temos avançado na discussão sobre as desigualdades estruturais, encontrando em ativistas e intelectuais como Djamila Ribeiro e Amara Moira abertura para a discussão sobre racismo, transfobia e sexismo não apenas nos espaços habituais da academia e dos encontros de movimentos sociais, mas na grande mídia, capilarizando o alcance da potência de suas vozes. Seria suficiente? Estariam elas seguras? Estariam elas mais ou menos seguras ou inseguras devido à sua visibilidade nos tempos de hoje? Nos importamos? É preciso se importar, pois já sabemos o que tem acontecido com outras feministas brasileiras, como Debora Diniz e Marcia Tiburi, levadas a deixar o país devido a ameaças de morte. Que debate público se tem desdobrado a partir de tais exílios? Quando muito, o questionamento sobre seus paradeiros, a cobrança moral de que deveriam ter ido para Cuba ou para a Venezuela, a banalização absoluta da gravidade do que seja não dispor da segurança para habitar o território da própria nacionalidade. Observo ainda o caso do professor Pedro Mara, do Rio de Janeiro. O mesmo tomou conhecimento de que seu nome estava entre alguns listados em uma busca realizada pelo suspeito de assassinar Marielle Franco, Ronnie Lessa, sendo o professor um desafeto de Flávio Bolsonaro. Decidiu, por questões de segurança, deixar a cidade, e o que obteve como resposta foi um processo administrativo de exoneração por abandono de cargo, denunciando o completo abandono institucional ao qual estamos expostos no atual momento político.

No meu caso, tenho escrito publicamente há sete anos sobre ataques morais que sofro por parte de autoridades públicas em função de meu trabalho sobre gênero e sexualidade, incluindo Jair Bolsonaro enquanto Deputado Federal, mas também os Deputados Federais Ronaldo Fonseca e Marco Feliciano. Hoje, o que tenho a dizer é que faz tempo que busco compartilhar publicamente minha preocupação, embora ecoe pouco. Estaria eu segura? Em Novembro de 2018 estive na Câmara Municipal do Rio de Janeiro e fui até o Gabinete do Vereador Carlos Bolsonaro, em que consta um Mural da Verdade na porta de entrada. Minha foto está lá. Meu nome próprio está lá. Qual a finalidade disso? Qual a função política de constar em um mural no gabinete do vereador em município em que sequer eu resido, minha foto e meu nome, junto a outros alvos ou inimigos políticos? No ano presente, no dia 06 de fevereiro de 2019, o outro filho do Presidente da República, o Deputado Federal Eduardo Bolsonaro, tuitou, supostamente como prova da existência do Kit-Gay, o vídeo que seu pai produziu em 2012, alegando que eu estimularia o “homossexualismo infantil”. Qual a função disso? E por que não é mais Jair Bolsonaro que me expõe, mas sim Carlos e Eduardo Bolsonaro? A imunidade parlamentar responderia esta questão? A imunidade para expressar concepções de mundo tais como que feministas seriam um grave risco social seria realmente um direito parlamentar não passível de questionamento, pois representaria uma grande contribuição política e social para a sociedade brasileira? Tenho eu que servir a este propósito como instrumento da agência política alheia, como se objeto de uso fosse? Haveria instâncias às quais recorrer?

Para que falar sobre isso publicamente? Para criar rastros. A única coisa que eu posso fazer é criar rastros, deixar marcas rastreáveis para o depois, pois agora não aparece acolhimento, não aparece resposta, não aparece intervenção. As instituições não respondem, faz-se pouco caso, se banaliza. Imagine se isso se multiplica, imagina se fosse com você. As pessoas variam entre perguntar por que eu ainda não fui embora do país ou me dizer que eu ainda não fui ameaçada de morte diretamente como tantas pessoas que são ameaçadas de morte diretamente. É bang-bang, se não caiu no chão furada tá boa. É gente dizendo que se fosse com elas teriam se matado, é gente falando que eu uso isso para me promover. É muita falta de debate público sério sobre insegurança. É comparação excessiva sobre quem está mais insegura do que quem, ao invés de identificarmos coletivamente as múltiplas formas em que estamos inseguras, como estão nos encurralando, cada qual, nas exatas posições que ocupamos. No meu caso, como já dispus de sete anos para pensar bastante a respeito e para viver diversas situações envolvendo relações pessoais e institucionais, o que tenho a dizer é que algumas condições dificultam o processo de identificação comigo e, neste sentido, fragilizam as alianças e articulações de redes de proteção. Precisaria eu ter encontrado pessoas exatamente como eu, passando por situações idênticas às que eu vivo para encontrar reconhecimento de que era importante reagir junto?

Para além dos políticos poderosos, também fui difamada por cidadãos anônimos, desses que constroem perfis falsos e criam nomes fantasiosos. Um deles, por exemplo, se chama Cavaleiro Conde, outro seria um reverendo que teria fundado uma Associação de Defesa da Heterossexualidade. O que se passou comigo foi que pegaram fotos minhas disponíveis na internet e, transviada que sou, existo para além do estereótipo da professora branca cisgênero privilegiada classe média, tal como muitas pessoas gostariam de me imaginar. Imagine: uma professora universitária, tatuada, que anda com puta, viado, sapatão e travesti. Olha ela ali com o ator pornô. Esquecem propositadamente que estudo sexualidade humana há mais de vinte anos? Poderia eu fazê-lo desde que me restringisse às referências bibliográficas, sem contato com a realidade social? Seria eu sexy demais? Encontraram por meio de buscas no Google memes em que eu “não me dou o respeito”? Poderia eu pensar sexualidade e gênero desde que não fosse eu mesma sexuada e expressasse por mim mesma dissidências em relação às normas de gênero? Por outro lado, continuo sendo professora universitária, branca, cisgênero, classe média. Acreditam mesmo as feministas em condições sociais, étnicas e econômicas diferentes da minha que eu estaria imune às opressões, empoderada pela academia e respaldada politicamente pelas variadas instituições públicas? As instituições não me protegeram e não foi devido à minha omissão na comunicação sobre o que se passa comigo. A universidade tem sido um espaço seguro para mim? Muito longe disso.

Precisamos com urgência fazer ecoar dores, acolher umas às outras, escutar o que não se passa conosco mas com as outras, e encontrar também quem nos escute. Temos que seguir juntas, unidas, fortalecidas. Temos que olhar umas para as outras, observar, alargar a perspectiva. Essas pessoas que dizem que não houve ditadura são as mesmas que dizem que é conversa fiada esse papo de deixar o Brasil, e são as mesmas que aplaudiram Jair Bolsonaro em campanha eleitoral propondo que haveriam aqueles que teriam que ir embora. Não está fácil permanecer, não é fácil decidir partir. O que precisamos é de segurança, a começar entre nós. Quem foram as pessoas perseguidas pela ditadura militar? Poderia ter sido eu, poderia ter sido você. Eram professoras, estudantes, ativistas. Alegava-se, naquela época, ameaça comunista e terrorista. Os que tomaram o poder se horrorizam com performances em que se denuncia o uso de baratas na tortura sexual contra mulheres na ditadura militar, mas aplaudem seu “mito” ao enaltecer torturador em discurso público para justificar seu voto pelo impedimento da presidenta Dilma. Hoje, alega-se ameça globalista, comunista, feminista. Sobretudo, a Direita Cristã e seu conceito de família natural tem construído como alvo político as feministas, inimigas da família, da nação e da Igreja.

Tenho buscado mostrar que há perseguição política em curso. Nossa tarefa é reivindicar reconhecimento de que este “acontecimento acontece”. Que possamos historicizar o que se passa conosco, e não apenas ficar repetindo, ano após ano, como esses meus sete anos seguidos, o mesmo grito aberto à exigência de elaboração. O silêncio das instituições é conivente. O silêncio de políticos supostamente aliados também. Estão esperando o que? Casos interessantes politicamente? É chegada a hora de ir embora? O que isso significa? Que ainda haveria caminho? Ou que uma batalha foi perdida? Estamos em situação de perseguição política e, assim como nos chamados anos de chumbo, temos que reconhecer que o que se passa hoje tem aval de parte significativa da sociedade brasileira. Por isso, temos que disputar sentido e reivindicar reconhecimento sobre o que acontece conosco. Lula é um perseguido político. Rafael Braga é um perseguido. Lola Aronovich é uma perseguida. Debora, Marcia, eu, somos. Eu sou uma perseguida. Tento entender, a partir do meu lugar e da minha condição, que estratégias eles adotam hoje. Certamente focam ataques que visam atingir a saúde mental, mas também a reputação e, neste sentido, pretendem minar a legitimidade moral dos ativismos perante instituições e perante a sociedade. Neste sentido, também não acredito mais em feminismo nenhum que silencia. Não acredito mais em articulação política que boicota outros grupos ou pessoas por divergências narcisistas. O tempo exige unidade.

Autora

Tatiana Lionço é professora da UnB e ativista feminista.