Estatuto do Nascituro: como garantir uma mulher-incubadora

Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 478/2007, que cria o Estatuto do Nascituro. Sua base ideológica é a de que, desde a fecundação do óvulo pelo(s) espermatozóide(s), o amontoado de células geradas nesse primeiro estágio deve ser considerado como um ser humano. Definido como: ”o ser humano concebido, mas ainda não nascido”, incluindo os seres ”concebidos in vitro, mesmo antes da implantação no útero da mulher”.

Contudo, a proposta não para por aí, pois assegura que o embrião deva ser entendido como um ser humano com direito prioritário à vida, à saúde e ao desenvolvimento. Pergunto-me, o termo “prioritário” refere-se a quem? Obviamente não diz respeito à mulher grávida; na verdade, não se prioriza a mulher em qualquer momento, já que este organismo vivo jamais estará no corpo de um homem cissexual.

Ou seja, este Projeto de Lei declara uma desigualdade constitucional voltada à mulher. Pois o embrião, uma vida em potencial, terá direito prioritário sobre a vida, o corpo e as decisões da mulher. Esse projeto afeta a sociedade como um todo, porque  define ”plena proteção” e ”prioridade absoluta” ao nascituro, além de determinar a punição de qualquer ”violação” de seus direitos, por ”ação ou omissão”. Dessa maneira, impede a pesquisa com células-tronco embrionárias, restringe o acesso de mulheres grávidas ao aborto em casos de estupro ou de risco de vida para a mulher e a uma série de tratamentos de saúde. Mulheres grávidas poderão perder acesso a tratamentos que envolvam quimioterapia, radioterapia, cirurgia cardíaca e até mesmo analgésicos, pois esses medicamentos podem afetar o embrião fertilizado. Além disso, pode criminalizar gestantes por atos simples como trabalhar.

Toda sociedade brasileira perderá muito com o fim das pesquisas científicas com células-tronco embrionárias. Porém, as principais afetadas serão as mulheres grávidas. Especialmente as mais pobres, em sua maioria negras. Porque a abastada financeiramente poderá dispor da opção de viajar para algum país estrangeiro ou pagar pelo serviço de médicos que realizem abortos clandestinos e que preservem sua identidade, se assim escolher.

Protesto a favor do direito das mulheres na Rio +20. Foto de Glauco Araújo/G1.

De qualquer forma, parece que a esse segundo sexo não basta parir, tem de parir da forma como o Estado quer e com a qualidade gestacional que o Estado pretende exigir. Seguindo preceitos do patriarcado e da igreja, como vimos essa semana durante as decisões envolvendo o documento final da Rio +20, em que o Brasil cedeu ao Vaticano. No texto final, a ser encaminhado aos chefes de Estado, a expressão “direitos reprodutivos” (estabelecido em 1995, na Conferência Mundial Para as Mulheres de Pequim), que afirma a autonomia das mulheres para decidir quando ter filhx(s), foi excluído. Só restou o termo “saúde reprodutiva”, que designa apenas o direito a métodos de planejamento familiar. Neste contexto, o Estatuto do Nascituro caminha para retirar ainda mais direitos das mulheres brasileiras.

Uma vez que uma medida com tais proporções seja implementada, ficará declarada a alienação do corpo da mulher e a usurpação de sua integridade física, psicológica e ético-moral. Isso configura atitudes decorrentes de um Estado com gestão ditatorial e misógina porque, voltemos a frisar, esta é uma violência declaradamente contra a mulher. Por isso, saiba quem apoia o projeto de lei e não merece seu voto.

O Estatuto do Nascituro parte do pressuposto de que toda mulher em estado gestacional é uma criminosa em potencial, pois qualquer malefício que venha a ocorrer ao feto, passará a ser diretamente imputado à gestante, cabendo aos agentes públicos verificar o dolo.

Pela legislação atual, o aborto é crime punido com detenção de um a três anos. Segundo o Estatuto do Nascituro, uma vez comprovado que o aborto foi induzido, a mulher será indiciada por um crime considerado hediondo, ou seja, crime de extremo potencial ofensivo, assim como é o estupro, por exemplo.

Uma mulher que induz um aborto, isto é, que decide não querer ser mãe naquele momento, muitas vezes arriscando a própria vida em um procedimento abortivo clandestino porque está desesperada e não deseja estar grávida e nem ter um(a) filhx, aos olhos da justiça deve ser comparada a uma pessoa que comete um estupro, que abusa sexualmente do corpo de alguém? Segundo este Projeto de Lei, sim! A mulher que aborta e um estuprador serão tratados como igualmente nocivos à sociedade, logo, merecedores de punições semelhantes. E então, pergunto-me, o que querem dizer por “sociedade”?

Se o Estatuto do Nascituro for aprovado, o Estado estará declarando não só a prioridade do feto sobre a mulher, mas também do homem sobre a mulher e isso, claramente fere o art. 5º, onde fica assegurado que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.” 

De todo modo, essa não é, e nunca foi, uma sociedade que preze pela integridade física e/ou emocional das mulheres. Não respeita sua integridade ao deixar de fomentar medidas públicas que diminuam os casos de violência sexual. Quanto apoio o Estado tem oferecido para propagandas com o fim de conscientizar a sociedade civil acerca da vulnerabilidade da mulher?

Julga e pune da pior forma a mulher, ao jogar sob ela toda a responsabilidade pela gravidez indesejada e, consequentemente, pelos casos de aborto. Sobretudo, a sociedade não respeita a integridade da mulher ao forçá-la a ceder seu corpo durante dado período, para gerar um ser humano que ela não escolheu gestar e/ou trazer ao mundo.

O Estado, em suma, ainda parece não ter compreendido a ideia radical de que mulheres são gente, pois continua usando a máquina pública para implementar a ideia não consensual, sob qualquer aspecto, de que um embrião com vida em potencial poder ter mais direitos que uma mulher adulta, trabalhadora, que na maioria das vezes tem outrxs filhxs.

Se fôssemos uma espécie ovípara ou não houvesse um determinismo biológico sobre quem gestará, certamente teríamos de chegar juntos a um consenso sobre as práticas abortivas. Contudo, aborto é uma questão que só diz respeito ao corpo individual da mulher. Não é o Estado ou sistemas religiosos ou alguns homens que devem dizer o que pode ser considerado aceitável ou não no corpo de uma mulher. Aceitar uma arbitrariedade intrusiva de tal natureza significa legalizar a violência sistemática contra a mulher.

Mulheres protestam durante a Rio +20. Foto de Marcello Casal/Agência Brasil

Violência não é apenas sofrer agressões físicas, verbais e/ou sexuais, mas também ter seu corpo e desejos subjugados a interesses alheios. O corpo é uma esfera individual e o Estado não tem o direito de pretender normatizá-lo de acordo com seus valores antidemocráticos.

Além de se tratar de um Projeto de Lei misógino, o Estatuto do Nascituro é inimigo dos avanços médico-científicos, pois pressupõe a proibição ou interrupção das pesquisas que são desenvolvidas com o uso de células-tronco.

A grande aposta para um futuro humano com melhor qualidade de vida será relegado ao campo da ficção científica, se o Estatuto do Nascituro for aprovado. Áreas como, por exemplo, a neurociência serão irremediavelmente afetadas, com prejuízos à sociedade civil.

Por isso, é hora de refletirmos acerca das violências a que estamos sistematicamente sujeitas, lutarmos contra elas e, sobretudo, impedirmos que outras tantas sejam impostas. Se o corpo é da mulher, a decisão sobre tudo aquilo que esteja nele deve caber apenas a si. Lutamos por um mundo em que o ser humano prioritário seja quem tem história, desejos e sonhos para concretizar. Lutamos por um mundo onde o machismo não ouse nos subjugar em qualquer esfera de poder.

Estamos na luta para que o Estatuto do Nascituro não seja aprovado. Torcemos para que você se junte a nós, pela luta contra a perseguição das mulheres e pela garantia de seus direitos. Porque não somos incubadoras. Somos sujeitos de nossa história.