Assédio verbal e a pesquisa “Chega de fiu-fiu”

Texto de Iara Paiva.

A divulgação na semana passada do resultado da pesquisa promovida pelo site Think Olga gerou bastante repercussão nas redes sociais (nosso clipping semanal traz alguns links sobre este debate). Oito mil mulheres responderam a pesquisa sobre o que escutam dos homens em espaços públicos. Oitenta e três por cento delas declararam se incomodar com as abordagens, mas a maioria disse que não reage a elas por medo. Boa parte das que reagem, xingam os homens que as abordaram.

Ilustração de Gabriela Shigihara divulgada pela campanha “Chega de fiu-fiu” do site Think Olga.
Ilustração de Gabriela Shigihara divulgada pela campanha “Chega de fiu-fiu” do site Think Olga.

Dados estes números, acho possível afirmar que há um incômodo generalizado, para dizer o mínimo. Mas o fato de tratar de um problema legítimo não poupou a iniciativa de críticas duras. Não pretendo colocar o link para elas porque não quero personalizar o debate, até porque tive o contato com algumas delas pelo twitter, que não é exatamente um canal adequado pra elaborações mais aprofundadas, mas gostaria de comentar alguns destes argumentos, que me pareceram bastante equivocados.

O primeiro deles foi que, dado o recorte muito específico da amostragem – só tiveram conhecimento da pesquisa mulheres que têm acesso à internet e, provavelmente, algum contato com o feminismo – a pesquisa apresentaria um falha estatística. Mas o rigor científico não me parece necessário para este tipo de debate. Sim, podemos imaginar que se o recorte das entrevistadas fosse mais diverso, os números seriam diferentes.

A pergunta é: se apenas 30% das mulheres se declarassem incomodadas, esta seria uma questão sem importância? A aprovação (ou a resignação) das outras 70% tornariam o problema irrelevante? Não acredito que seja o caso. Este post comenta um pouco sobre a parte estatística e diz o que me parece fundamental ao falarmos de números: a possibilidade de agradar a um grupo, seja maioria ou minoria, não deveria justificar o constragimento de todas as outras. Obrigar todas as mulheres a ouvirem gracejos porque eventualmente algumas podem gostar não faz sentido.

Depois, houve quem dissesse que “chega de fiu-fiu” soa a “censura”, e que as mulheres deveriam reagir quando se sentissem incomodadas. Que a palavra “censura” seja evocada em um caso desses me faz lembrar a queixa de humoristas que se ressentem quando suas piadas ofensivas são criticadas e se queixam de uma suposta “ditadura do politicamente correto”. Ninguém está dizendo que as pessoas devem ser obrigadas a se calar. A reflexão é outra, sobre quando e porque falar. Sobre conscientizar-se sobre o que se fala. Sobre o constrangimento, nos casos mais leves, e a violência, nos mais graves, que a palavra pode significar.

O fato é que aos homens é ensinado que podem dizer tudo, e as mulheres que devem ter muito cuidado com o que dizem. Não por acaso, entre os comentários no post de divulgação da pesquisa, há homens ultrajados com a sugestão de que seus gracejos não sejam bem-vindos. Mas as mulheres aprendem, desde a puberdade, que essas manifestações masculinas são parte de sua experiência. Logo, algumas se resignam ainda que estejam desconfortáveis. E algumas não reagem por medo, porque sua experiência é marcada pela violência de gênero. Por mais que, como feministas, nosso objetivo seja fortalecer todas as mulheres, sabemos que parte considerável delas se sente muito acuada. Colocar em seus ombros a responsabilidade de lidar com um problema que não causaram nos parece muito injusto. A reação é bem vinda, mas ela não resolve a questão – e em alguns casos pode colocar a mulher em risco.

Por fim, houve quem bradasse sobre moralismo ou um excesso de burocratização nas relações, uma perda de espontaneidade. Que muitos deliciosos flertes duram apenas pouco segundos entre uma intensa troca de olhares e uma troca de beijos entusiasmada. É realmente muito difícil definir regras absolutas sobre o que seria válido ou não em uma aproximação, concordo. Há um tempo atrás traduzi um texto sobre isso escrito nos Estados Unidos e reconheci ali mesmo que algumas daquelas situações não pareciam tão aplicáveis à nossa cultura.

O flerte como construção cultural, sofre mudanças no tempo e no espaço. Mas acho que há uma regra de ouro que pode ser aplicada em qualquer situação: a reciprocidade. Qualquer aproximação deve considerar que as mulheres são sujeitos de sua sexualidade e livres pra corresponder ou não às investidas. E caso não correspondam, não devem ser constrangidas por isso. Insinuações sexuais gratuitas são constrangedoras para imensa maioria das pessoas. Aproximações aparentemente bem educadas podem se tornar muito invasivas e desconfortáveis quando o suposto moço bem intencionado é insistente. E elogios não deveriam ser impostos. Ser chamada de “linda” por um estranho quando estamos andando em uma rua escura soa mais ameaçador do que lisonjeiro.

Cabe ainda lembrar que o debate sobre o tipo de reações e sobre a espontaneidade ou não do desejo parece ignorar que o assédio verbal nos espaços públicos começa muito cedo. Em alguns casos quando a menina mal saiu da infância, e geralmente tem menos recursos tanto para reagir às manifestações, quanto para elaborar que não são responsáveis por serem assediadas. Pode parecer fácil distinguir o sujeito que chama uma menina de 11 anos de “gostosa” na rua do “cara boa praça” que constrange a mulher adulta na balada pela sua insistência (“afinal, as pessoas não estão ali pra isso?”), especialmente quando boa parte dos homens não se identifica com o primeiro, mas pode já ter estado na situação do segundo. Enquanto o primeiro é visto como praticamente um criminoso, um pedófilo, e o segundo é “só um chato”. Não pretendo aqui dizer que uma coisa é tão grave quanto a outra, mas ambas fazem parte de uma cultura que queremos combater: a de que mulheres podem ser constrangidas por serem mulheres.

Não acredito que todos os homens que abordem desconhecidas sejam estupradores em potencial. Mas uma parte significativa deles se comporta como se sua vontade de se manifestar fosse mais importante do que o bem estar de quem desejam. Não estamos em guerra contra o desejo. Os homens podem continuar desejando quem quiserem. Nós mulheres desejamos também, inclusive pessoas desconhecidas que passam pelo nosso caminho. Mas o limite da expressão do desejo deve ser, sempre, o respeito por quem é desejada. Não se trata de cristalizar as mulheres na condição de vítimas porque são objeto de desejo, porque não é o desejo de outrem que nos ameaça, mas a ideia de que somos passivas no jogo da sedução, que a nossa aprovação é desnecessária. Atitudes que desconsideram nossa agência, seja a imposição de grosserias de cunho sexual, seja a insistência inconveniente em aproximações à primeira vista bem educada, seja deslegitimação de nossa opinião quando externamos nosso desconforto, são extremamente desrespeitosas. Também não me parece o caso de colocar no mesmo balaio todas as críticas e rotulá-las como machistas, mas de insistir que se a pesquisa divulgada tem suas limitações, ela é uma tentativa de desnaturalizar uma condição imposta às mulheres desde a infância como parte de seu cotidiano. Uma iniciativa que nos parece muito bem-vinda e digna de um olhar que não subestime a gravidade do problema abordado.