Em legitima defesa da honra: a construção do discurso que sobrepõe a honra do homem sobre o direito de viver garantido a mulher

Texto de Tamires Marinho para as Blogueiras Feministas.

O assassinato de mulheres ocorreu em todos os períodos da história brasileira. Porém, ao contrário do se pensa, a tese de ‘em legitima defesa da honra’ que absolvia o marido assassino da esposa, desde que esta estivesse atitudes indecentes, não morreu junto com a sua proibição legal. Esse discurso se enraizou na mentalidade do indivíduo social, de modo que sobreviveu a décadas e cobranças judiciais cada vez mais rigorosas. Assim, silenciosamente milhares de mulheres foram assassinadas, violentadas e posteriormente difamadas como merecedoras das agressões. Trata-se, portanto, de uma inversão de valores. Onde a vítima torna-se culpada, e o algoz torna-se defensor da própria honra.

É absurdo pensar que uma tese tão deslegitima tenha sido utilizada nos discursos dos advogados de agressores e assassinos de mulheres. Mais absurdo ainda é pensar que não se precisa voltar muito no tempo para esbarrar nessa discursiva. No dia 30 de dezembro de 1970 em Búzios(RJ), o paulista Doca Street matou sua amante Ângela Diniz com quatro tiros, três no rosto e um na nuca. A defesa alegou que o réu fora levado a isso através de provocações e má conduta de Ângela Diniz. Com esta versão passional da defesa, Doca Street foi condenado a apenas dois anos de reclusão e saiu venerado por uma multidão. Em 1981, o caso foi novamente a julgamento e Doca foi condenado a 15 anos de reclusão.

Após esse episódio os índices de crimes passionais e de violência de gênero subiram. Contextualizados por uma sociedade que evoluía e se urbanizava cada vez mais, sobretudo com mudanças para as mulheres, que conseguiram adentrar o mercado de trabalho e por sua vez, adquiriram determinada autonomia. A violência doméstica ganhou maior visibilidade na imprensa e nos tribunais. E o bordão “Quem ama, não mata” ecoava, intitulando uma minissérie global. A palavra passional passou a ser utilizada com maior frequência. Palavra de origem latina que significa: “suscetível de dor; suscetível de paixões; movido a paixão, patético”, do lat. Passion: “paixão, passividade, sofrimento, perturbação moral”.

Consequentemente, crime passional é aquele motivado por arrebatadora paixão, o que por via de regra romantiza e acaba atenuando a posição do algoz, procurando na posição moral da vítima o merecimento da agressão. Assim, os papeis se invertem e o agressor se torna, no imaginário social, o agredido, e a vítima transforma-se na megera que o magoou. Qual o impacto desta discursiva no cotidiano da mulher?

Fotos da Campanha #MulheresContraOFeminicídio da Marcha Mundial das Mulheres – Núcleo MMM Sertão. A estudante Rosilene Rio foi morta a facadas no campus da Univasf em abril de 2015, por seu ex-companheiro.
Fotos da Campanha #MulheresContraOFeminicídio da Marcha Mundial das Mulheres – Núcleo MMM Sertão. A estudante Rosilene Rio foi morta a facadas no campus da Univasf em abril de 2015, por seu ex-companheiro.

Para compreender isso é necessário que se analise as raízes de uma moralidade nacional construída em cima da herança cultural portuguesa, fortemente conectada ao passado medieval europeu. Diante disto, entre outras coisas e costumes, os portugueses trouxeram para a recém descoberta América um modelo de organização familiar, praticado desde o mundo antigo, o chamado modelo patriarcal. Atualmente, adotado em praticamente todas as culturas existentes. Com o eurocentrismo combateram os costumes indígenas e adaptaram o patriarcado as condições sociais do Brasil latifundiário e escravagista, onde o homem é proprietário da terra, dos escravos e da mulher (seja esposa ou filha).

O patriarcado coloca o homem como núcleo da relação familiar, no entanto, ele não apenas configura o poder da figura paterna, mas o poder dos homens em âmbito social e cultural. Todas as figuras de autoridades são homens: pai, marido, padre, bispo ou o estado. Assim, enfatiza-se no imaginário feminino a submissão diante da autoridade do patriarca — resguardada e embasada pela dogmática da religião católica, onde a mulher é uma extensão do corpo masculino, criada para lhe servir. E, que na tentação da serpente levará o homem a pecar contra Deus e perder o paraíso.

Dentro deste molde patriarcal a mulher é subordinada ao homem, o que explica o controle da sexualidade, do corpo e da autonomia feminina. Estabelecendo assim privilégios sociais e sexuais ao homem que, como soberano, pode se render a caprichos sexuais, dormindo com escravas, prostitutas e outras mulheres, além de sua esposa. A sociedade faz vista grossa a infidelidade do homem. Em contrapartida, para as moças só resta a virgindade e a monogamia. Contudo, a infidelidade da mulher sempre existiu, até como uma fuga da opressão social, sexual, emocional e econômica que sofria na instituição que representava o casamento.

Este desvio da mulher não era relevado socialmente como ocorria com o homem, exigia dela total fidelidade sob a pena de duros castigos, entre eles a morte. Segundo Simone de Beauvoir, essa obrigação acerca de fidelidade da mulher se explica através da noção de propriedade privada, já que, os bens passavam de pai para filho, e seria desagradável passar as propriedades para um bastardo. “Enquanto dura a propriedade privada, a infidelidade conjugal da mulher é considerada crime de alta traição” (Beauvoir, p.817).

E, mesmo que o direito de fazer justiça com as próprias mãos tenha sido abolido, ainda se perpetuou uma indulgência da sociedade com o marido justiceiro durante muitas décadas. Uma vez que, se a mulher é propriedade de seu marido, ele tem a liberdade de tomar qualquer atitude que queira diante de sua traição. Se o homem mata a mulher traidora, é desculpável aos olhos da lei; sendo a vítima culpada de provocar sua ira com atitudes desrespeitosas. Diante disto, cabia ao homem protege-la de si mesma. Ou seja, era uma obrigação do macho manter a mulher em seu devido lugar: o lar. Condicionando até mesmo os sentimentos, como amor e paixão.

No século XVI, a mulher não era apenas casada, mas também tutelada pelo seu marido. Durante a revolução industrial a figura da mulher entra como proletária, no entanto ela passa a ser vista como forte concorrente, uma vez que, trabalhava por salários muito inferiores. Nesse momento, as reivindicações feministas ganham notoriedade, embasadas por fundamentos econômicos. Os antifeministas em resistência as exigências do movimento, apelaram para todas as ciências possíveis: religião, filosofia, teologia, biologia, psicologia, medicina, etc. Isso porque, para a burguesia conservadora a emancipação da mulher era moralmente ameaçadora. “Certos homens temem a concorrência feminina” (Beauvoir, p. 339-340).

Essa construção da mulher como mãe e esposa se firmou e atravessou séculos. Dado que o indivíduo é uma ideia histórica. Por isso, não é difícil citar casos conhecidos de mulheres vítimas do discurso de ‘em legitima defesa da honra’.

Referências bibliográficas

ASSIS, Maria Sônia de Medeiros Santos de. Tese da legítima defesa da honra nos crimes passionais – da ascensão ao desprestígio. Dissertação de Mestrado em Direito Público. Direito Penal. UFPE – Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2003.

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Lisboa. Bertrand Editora, 1949.

BESSE, Susan K. Modernizando a Desigualdade: Reestruturação da Ideologia de Gênero no Brasil, 1914-1940. São Paulo, EDUSP, 1999.

DA ROSA FILHO, Claudio Gastão. Crimes passionais e tribunal do júri. Florianópolis: Habitus, 2006.

ELUF, Luiza Nagib. A paixão no banco do réus. São Paulo: Saraiva, 2002.

FARIA, Nalu; NOBRE, Miriam. Gênero e Desigualdade. São Paulo: SIOF, 1997. (Coleção Cadernos Sempreviva).

FORWARD, Susan. Homens que odeiam suas mulheres e as mulheres que os amam. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre: Faculdade de Educação – FAE: UFRGS. V. 20, nº 2, p.71-100, jul/dez, 1995.

SILVA, Evandro Lins e. A defesa tem a palavra. Rio de Janeiro: Aide Editora, 1991.

Autora

Tamires Marinho é apaixonada pelo comportamento humano e pelos conhecimentos empíricos da vida. Clarice Lispector é meu lado escritora, Darcy Ribeiro me faz socióloga, Beauvoir é minha militância. Escritora amadora, psicóloga mal formada e historiadora em desenvolvimento. Me orgulho, defendo tudo que sou e acima de tudo: Sou mulher!