Pelos dez anos da Lei Maria da Penha

Texto de June Cirino dos Santos para as Blogueiras Feministas.

É claro que não é fácil ser advogada. Na verdade, essa informação nem é surpreendente, já que os ambientes jurídicos são evidentemente masculinos. Ser advogada criminal também não ameniza a situação – afinal, de todas as áreas do direito, essa talvez seja a mais inóspita para as mulheres. Mas o desafio maior é ser advogada criminal e feminista, especialmente quando se parte de uma compreensão crítica sobre o sistema penal.

A aparente tensão entre o feminismo e a crítica do direito penal e da criminologia se acentua quando a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06) é colocada em pauta: se por uma perspectiva feminista a lei é louvada por proteger a mulher vítima de violência, por uma perspectiva criminológica a lei é rechaçada por ser punitivistas e rigorosa. A verdade é que essa aparente tensão deveria se transformar em diálogo e compreensão, já que tanto o feminismo quanto a criminologia crítica tem perfil emancipatório e buscam a liberdade humana, opondo-se a matrizes de opressão. Mas essa tensão, que na prática se sente bastante forte, é cotidiana para as advogadas feministas que enfrentam a justiça criminal.

Agosto/2016. Grafite em homenagem aos dez anos da Lei Maria da Penha é inaugurado no centro de São Paulo. Imagem: Hélvio Romero/Estadão Conteúdo.
Agosto/2016. Grafite em homenagem aos dez anos da Lei Maria da Penha é inaugurado no centro de São Paulo. Imagem: Hélvio Romero/Estadão Conteúdo.

A Lei Maria da Penha completa dez anos. E são dez anos de vitórias substanciais, não importa o quanto a critiquem: o reconhecimento da violência doméstica e familiar contra a mulher como problema estrutural da sociedade brasileira, a promoção da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres, o deslocamento da mulher vítima a uma posição de centralidade no processo. A necessidade de um ambiente distinto e do maior preparo técnico dos servidores para lidar com a questão levou à criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. A criação das medidas protetivas de urgência, que têm caráter de prevenção, assistência e contenção da agressão, tem como objetivo o rompimento do ciclo de violência.

O que se percebe é que aquilo que é fundamental da Lei Maria da Penha está relacionado à prevenção e contenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, e não necessariamente aos seus artigos de natureza penal (a hipótese de prisão preventiva e o aumento de pena). Neste sentido, sua aplicação se dá justamente na sua forma mais emancipatória: ao buscar soluções no uso alternativo do direito, a lei se torna um recurso estratégico para atingir seus objetivos, sem fortalecer inadvertidamente o poder punitivo do Estado (que é por origem patriarcal e somente reforça as desigualdades de gênero).

Mas o que a prática da advocacia demonstra é que mesmo a Lei Maria da Penha não funciona em total liberdade das amarras do patriarcado. As boas intenções que a lei tenta injetar no judiciário parecem se desmanchar com as interpretações do aplicador do direito ou com a invisibilidade das diversas realidades sociais que se contrapõem nos processos. É por isso que, mesmo após dez anos de muitos méritos, ainda somos surpreendidas com decisões que reproduzem a mesma opressão que o feminismo combate. Dez anos não bastam para resolver um problema que é estrutural e endêmico à nossa sociedade. A mera aplicação (ainda que bem sucedida) de uma lei não basta para reverter uma cultura de violência contra a mulher.

É por isso que a luta feminista não pode arrefecer, especialmente aquela que se faz dentro da advocacia criminal. Se ainda não derrubamos o patriarcado, ao menos resistimos a ele com os instrumentos que nos são fornecidos – e dentre eles a Lei Maria da Penha pode ser essencial, apesar de todas as críticas que possam ser feitas. De fato: não é fácil ser advogada criminal e feminista, mas certamente há recompensa quando nos colocamos na “transversalidade das lutas de todos os excluídos”[1].

Referência

[1] BARATTA, Alessandro. O paradigma de gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999, p. 63.

Autora

June Cirino dos Santos é advogada criminal. Mestranda em Direito pela UFRJ, com pesquisa em Criminologia e Feminismo. Militante no Coletivo Direitos Pra Todxs.