Nesta semana uma das colegas da lista de discussão trouxe um texto publicado em 2009 em um blog sobre Catolicismo e castidade. Trata-se de um depoimento da escritora Rebecca Walker, filha da escritora feminista Alice Walker, mais conhecida pelo livro A Cor Púrpura, transposto para as telas sob a direção de Steven Spielberg e com Whoopi Goldberg no papel de Celie, a protagonista.
As palavras de Rebecca publicadas no Mail Online em 23 de maio de 2008, traduzidas e republicadas em vários blogs, entre eles o Vida e Castidade, relatam como foi crescer em um lar no qual não só os pais se separaram, mas também vivendo à sombra de uma mãe descrita como feminista radical egocêntrica e egoísta: ela nunca estava em casa, não acompanhava a rotina da filha, não participava de eventos escolares e ainda desencorajava atividades envolvendo o cuidado do lar – que seriam uma espécie de escravidão – e a maternidade, outra prisão para a mulher:
“Quando eu era criança pequena, eu não tinha permissão nem de brincar com bonecas ou qualquer brinquedo que poderia fazer surgir em mim o instinto maternal. Estava impregnado em mim que ser mãe, educar uma criança e ser dona de casa era uma forma de escravidão. De acordo com ela, ter uma carreira, viajar o mundo e ser independente era realmente o que importava.“
Rebecca revela, com amargura, que sua mãe era vista como uma mulher maternal e reconhecida como ícone para muita gente, mas ela mesma não era beneficiada por aquele espírito compreensivo e generoso: a atitude de sua mãe era, segundo ela, de omissão. Ela viajava e deixava a filha com parentes, não providenciava roupas ou comida; por outro lado, apoiou a iniciação sexual da filha aos 13 anos. Apesar de usar a pílula, Rebecca afirma que engravidou e decidiu abortar a criança, carregando o trauma consigo até ter seu filho, muitos anos depois. Após encontrar um homem que parecia ser um modelo de companheiro e pai perfeito, Rebecca engravidou novamente e, segundo conta, perdeu o contato com a mãe após contar-lhe sobre a gravidez: a reação de Alice teria sido de decepção. Rebecca declarou em entrevistas algumas opiniões a respeito de sua criação que enfureceram sua mãe, e foi cortada de seu testamento. Alice até então não havia sequer visto seu neto, então com 4 anos de idade. Rebecca conclui que sua experiência como fruto de uma educação feminista foi um desastre e hoje pode se dedicar com muita alegria a fazer o que sua mãe rejeitava: viver a maternidade.
Pois muito bem. Minha primeira reação ao depoimento de Rebecca Walker foi de profundo incômodo. Em primeiro lugar porque ela, apesar de mencionar que o feminismo trouxe muitos benefícios a muitas mulheres, identifica todo o movimento com a visão estereotipada da aversão à família, ao casamento, à maternidade: a generalização mais rasa possível. Em segundo lugar me lembrei de como nossas discussões internas – em lista – e externas ressaltam a pluralidade do feminismo e da maternidade especificamente. Finalmente preocupou-me o fato de a circulação desse texto (e de outros do gênero) aumentar o risco de vermos nosso próprio discurso apontado contra nós mesmas – lembrando que o fato de Rebecca ter sido criada em um lar chefiado por uma feminista supostamente confere a ela o status não só de testemunha, mas de sujeito participante dessa realidade.
Ora, eu sou uma mãe feminista; mãe de menino, que vem sendo criado para compreender a construção de uma família e a gestão de um lar a partir de conceitos que incluem liberdade e limites, direitos e obrigações, ônus e bônus. Fosse mãe de menina a preocupação seria exatamente a mesma, posso garantir, porque a nossa ideia de família e lar é baseada na igualdade de direitos e deveres, na responsabilidade compartilhada, não nas ideias tradicionais de “tarefa de homem” e “tarefa de mulher”, “homem trabalha”, “mulher fica em casa”. A maternidade foi, para mim, uma escolha, e o trabalho mais difícil é justamente o equilíbrio entre os meus desejos, meus interesses, as minhas necessidades – já que o que saiu de mim depois do parto foi bebê e placenta, e não a minha identidade e a minha individualidade – e os desejos, os interesses e necessidades da família como um todo e de cada indivíduo que a compõe. Eu rejeito, como o fazem também minhas colegas feministas, a ideia de que o feminismo é avesso à maternidade e à família – mais que isso, ele é partidário acima de tudo da liberdade de escolha e do respeito às escolhas alheias. Se não for assim, como podemos deixar de contemplar a necessidade de respeito e apoio que têm as mães e donas de casa em tempo integral, as mulheres que são chefes de família e assumem jornada profissional, as famílias em que os pais assumem afazeres domésticos e mães trabalham fora – isso para mencionar apenas as famílias encaixadas dentro do padrão heteronormativo. Como vamos deixar de lutar para que todas as conformações familiares sejam reconhecidas e respeitadas? Com que direito alguém hierarquiza a “melhor” maternidade e a “pior”? Ninguém aqui prega o abandono de crianças, mas eu sei que sou uma mãe muito melhor com minha jornada dupla do que jamais fui quando “apenas” cuidava do meu bebê pequeno e da casa e sei que há mulheres que se realizam ao se dedicarem exclusivamente ao ambiente doméstico – não era esse o grande conflito da Lynette Scavo pelo menos nas duas primeiras temporadas de Desperate Housewives? Trabalhando ela se sentia culpada por não estar com os filhos, estando em tempo integral em casa ela se sentia insegura e incompleta.
A maternidade focada na proximidade entre mãe e filho(s) que é tomada como padrão é construção mais recente, de no máximo um século para cá: a História e a Literatura estão cheias de exemplos de mães – principalmente burguesas e nobres – que pariam, entregavam suas crianças a amas de leites, babás, tutores, e seguiam suas vidas e continuavam desempenhando seus papeis dentro da organização familiar. Viver uma vida à parte dos filhos era inclusive um imperativo social. Não se pode lhes atribuir falta de amor ou acusá-las de omissão ou falta de zelo. A própria criança era vista como um adulto em miniatura, e não como um indivíduo em uma fase específica da vida, requerendo cuidados diferenciados, constituindo um nicho consumidor poderoso, como é hoje – quem pode afirmar que a molecada que tem todos os seus desejos atendidos pelos pais está sendo melhor criada do que as crianças do início do século passado? É óbvio que há aspectos do desenvolvimento físico, intelectual e psicológico que podem ser melhor contemplados agora, mas a isso não é garantia de que estamos todos formando adultos melhores, mais conscientes e mais respeitáveis.
A verdade é que Alice Walker pode ter sido sim uma mãe omissa, irresponsável, cruel. E Rebecca, por ter se tornado uma feminista diferente da mãe e ter escolhido caminhos diferentes, é a prova viva de que, ao contrário do que apregoa com tanto ressentimento, o feminismo é marcado pela pluralidade. Essa é a verdade que o blog católico ignora, sem querer (a gente precisa esperar o melhor das pessoas, não é mesmo?) ou de propósito (…por outro lado não dá pra acreditar que sejam muito imbuídas de boa vontade para com o feminismo as pessoas que selecionam, traduzem, postam e divulgam material que condena quem não segue preceitos cristãos de castidade, obediência e modéstia).
Agora… a verdade que o mesmo blog desconheceu ou deliberadamente omitiu reside no fato de que o estopim da briga entre Alice e Rebecca Walker nos anos 90 foi a disputa por uma amante, a cantora Tracy Chapman – de acordo com os relatos (um aqui e outro aqui – e são apenas dois entre vários), a filha teria perdido a namorada para a mãe. A situação se complicou também depois que Tracy emprestou dinheiro a Rebecca para que ela abrisse um cybercafé voltado para lésbicas e pediu de volta o dinheiro quando o negócio naufragou. A oposição ao feminismo da mãe é mais do que ressentimento e divergência ideológica – existe também um forte componente afetivo envolvido. E por esse, definitivamente, acho que os blogueiros que acham que a maternidade e o feminismo são opostos não esperavam – aquela que seria um exemplo de mãe realizada rejeitando o feminismo é uma combativa feminista bissexual assumida, coisa pouquíssimo afinada com os preceitos divulgados por eles no blog. Oops. Mais sorte na escolha das fontes da próxima vez, pessoal.
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Imagens:
1. Alice Walker, por Virginia DeBolt, sob licença Creative Commons.
2. Rebecca Walker, por David Fenton, sob licença Creative Commons.
Imagem destacada: Madonna Terranuova (1505), de Rafael Sanzio, pintura originalmente no Staadtliche Museum de Berlim.