Ela (sente)

Texto de Fabiana Motroni

esse poema nasceu do encontro de três rios pessoais. o primeiro, onde venho navegando minha necessidade de entender e separar o que, num relacionamento amoroso, é a manifestação de uma ‘carência culturalmente construída’ daquilo que é uma necessidade genuína e saudável de enxergamento da gente pelo outro (ou especificamente as pessoas eleitas que amamos). o segundo, cuja correnteza traz os impactos simbólicos, emocionais e orgânicos que o filme ‘Ela’ (Her) (em cartaz nos cinemas brasileiros, do diretor Spike Jonze) provocou em mim, gritando por uma elaboração pessoal e, no limite, por uma catarse literária (eis aqui um começo). e o último subiu como uma maré de inspiração — que reuniu e se somou como narrativa aos dois primeiros — cuja vazante me deixou como oferenda esse fantástico trabalho da artista plástica Eliza Bennett, e seu feminismo bordado na pele, numa sincronicidade que se escancarou enquanto eu googlava imagens do filme ‘Ela’.  desse encontro de três narrativas do elemento água  surgiu em mim, caudalosa, essa reflexão poética sobre as relações tecidas culturalmente entre felicidade, dor (física e psíquica, infelicidade), beleza, e a identidade da mulher em nosso mundo.

A woman’s work is never done (carne, pele e fios / 2011) - através dessa intervenção na própria pele, a artista plástica Eliza Bennett explora a delicadeza do bordado, tido como um fazer feminino, para discutir o seu oposto, o trabalho duro, árduo e mal-remunerado das mulheres, independente de ser um trabalho manual ou não http://elizabennett.co.uk/
A woman’s work is never done (carne e fios / 2011) Eliza Bennett — http://elizabennett.co.uk

 

é amor quando o outro não te enxerga?
é amor quando o outro não sente o mesmo?
é amor quando o outro às vezes nem há?
é amor quando dói?  precisamos do outro pra amar?

 

escrevo em mim tessituras
de desafios e desejos
de uma vida comigo
sozinha e com você

 

(até queria que os nós
fossem apenas da amarração
entre eu e mim mesma,
mas não)

 

então eu me teço histórias
delicada como o crochê da avó
forte como o tricô das tias
uma colcha de retalhos
com velhas fotografias
de prendas de rendas
contendas
de bilro e de filé
de todas essas tramas que amarram
o amar ao ser mulher

 

e vou me descosturando
a identidade de carretéis
me desfiando a viver feliz
desenrolando papéis

 

mas não é o perfurar da agulha
ou a agonia do fio puxado
no amor, na arte: na vida
dor mesmo é não ser enxergado

 

então sigo a costurar
liberdades e sentimentos
você que acha poesia linda
mas tem medo de sofrimento
não sentirá na sua alma
essa minha pele bordada
não sentirá o seu corpo
suspenso nas tranças da rede
enquanto esconder sua sede
jamais saberá entender
que é o drama que faz macia
a sua colcha de piquê.