Responsabilidade no Trânsito

Todo mundo que dirige está sujeito a transtornos no trânsito: apenas um segundo de distração, por bobeira, podemos bater o carro, ferir outras pessoas e até mesmo matar. Como mostra uma campanha australiana para reduzir as mortes nas ruas e rodovias, o problema é mundial, entretanto, no Brasil, a violência no trânsito atinge patamares assustadores. Por aqui, existe um padrão comportamental coletivo de desrespeito tão arraigado que, simplesmente, estamos negligenciando uma verdadeira carnificina que acontece todos os anos neste país.

Os dados são alarmantes. Por volta de 35 mil pessoas morrem em decorrência de acidentes de trânsito por ano no Brasil, o que equivale, por exemplo, à população de uma cidade nem tão pequena do interior de São Paulo. Sem contar os que ficam gravemente feridos, tetraplégicos, mutilados, que perdem os sentidos, como a visão ou audição. Além disso, devido aos acidentes não computados oficialmente, o número efetivo deve ser ainda maior.

Os números, porém, não transparecem a amplitude e os efeitos sensoriais do estrago. Já leu uma certidão de óbito de quem sofreu um grave acidente de carro? Já ouviu relatos de policiais rodoviários ou trabalhadores de ambulâncias sobre o que eles costumam ver em colisões nas estradas? Cabeças decepadas, pessoas atiradas pela janela e que, no asfalto, parecem bonecos de panos ensanguentados, corpos mutilados, estraçalhados, moídos. Que não nos enganemos, pois é disso que os números estão falando.

Mais desalentador ainda consiste em saber que, na vasta maioria das vezes, o “acidente” poderia ter sido evitado se houvesse mais respeito pelas pessoas e pelas leis, de modo que muitos dos ditos acidentes de trânsito são verdadeiros crimes de trânsito, como se fosse uma pessoa matando outra, assim, sob o desatento olhar da sociedade.

Até quando toleraremos mortes e impunidade? É num país desses que queremos viver, permitindo tamanho extermínio?

Enxergando os problemas de forma integrada

Quanto à violência no trânsito, o Brasil apresenta um duplo problema dentre as múltiplas causas possíveis: primeiro, a dificuldade de incorporar noções de cidadania na convivência social e uma certa rejeição aos preceitos do Estado de Direito. Segundo, é um país onde a dominação masculina ainda prevalece e continuamos ensinando gerações de meninos a assumirem comportamentos que, muitas vezes, extrapolam a coragem, a auto-confiança e o domínio do medo e que, no trânsito, acabam por provocar uma sensação ilusória de auto-controle em situações completamente inseguras e perigosas.

Desrespeito às pessoas e às leis

Das “boas” e “más” características que um povo pode assumir, sem dúvida uma consequência perversa do nosso “jeitinho brasileiro” tem a ver com a dificuldade em seguir regras coletivas, ou de não-privilégio, como queiram. Furar filas, pagar uma propina para “facilitar” as coisas de vez em quando, tentar levar vantagem em alguma transação comercial são apenas uns poucos exemplos. No geral – e isso não vale para todo mundo -, sempre estamos querendo nos dar bem. Quando se tem dinheiro, então, tais comportamentos podem se potencializar.

O que escutamos com certa frequência é que falta educação no trânsito. Mas reparem que não só falta educação no trânsito, como também falta educação ambiental, educação política entre uma lista que podemos citar. Talvez falte cada um se colocar no lugar dos outros e refletir sobre seu próprio comportamento. Talvez falte empatia pelo outro. E quem dirige pelas ruas e rodovias sabe dos desrespeitos cometidos pelos motoristas, desde a ultrapassar, em muito, o limite de velocidade ou avançar perigosamente o sinal vermelho. Quantos desastres e quantos desastres em potencial existem por aí, isso sem falar na enorme quantidade de motoristas que atropelam e não param para prestar ajuda, seguem como se nada tivesse acontecido, como se tivessem passado por cima de uma caixa de papelão. Quantos e até quando?

Mesmo que não sejamos nós a dirigir, temos que nos preocupar com as condições de segurança tanto dos veículos que transitam pelas ruas quanto das condições físicas e emocionais dos motoristas. Com altas taxas de atropelamento no Brasil, os pedestres também têm que estar atentos para essas questões.

Em linhas gerais, são os carros que conservam a primazia das ruas brasileiras, senhores absolutos e, portanto, os pedestres têm que esperar que os carros passem para que eles possam atravessar alguma rua ou avenida. Em ruas movimentadas, sem semáforo e sem faixa de pedestres, situação comum no país, pedestres têm que se aventurar por alguma brecha entre carros em alta velocidade, sendo que, muitas vezes, são idosos ou mães com filhos no colo que se vêem obrigados a se submeter a isso.

Vocês já repararam que, quando estamos atravessando a faixa de pedestres e lá pelo meio da faixa, às vezes parece que alguns motoristas aceleram para que eles não precisem brecar? E quando quase nos atropelam por conta disso, quase que sentindo os pneus passando por cima de nossos pés? Estamos tão desacostumados quando os motoristas param na faixa de pedestres para que o pedestre atravesse que até agradecemos a quem parou (inclusive eu), mesmo sabendo que é um direito nosso. Tem que parar! Numa colisão entre uma pessoa de 70kg e um carro de 1,5 toneladas, quem será que vai sair mais prejudicado? Claro está que pedestres e ciclistas também precisam respeitar as regrinhas básicas de convivência no trânsito, o que nem sempre acontece, mas necessitam, sobretudo, serem respeitados, porque estão em desvantagem, detendo apenas o próprio corpo para se protegerem diante de um motorista resguardado dentro de uma máquina.

Atualmente, a prática do uso do cinto de segurança nos bancos da frente está bastante aceita e disseminada, mas ainda há total esquecimento do uso do cinto no banco de trás. “Ah, não precisa”. Precisa, precisa, sim! Se houver uma batida frontal grave, por exemplo, a pessoa pode “voar” do banco de trás para o banco da frente e, daí, para fora do carro. É um perigo tanto para o carona do banco de trás, sem o cinto, quanto para o motorista, mesmo que esteja com o cinto de segurança. Na Suíça, país europeu com regras mais austeras, o carona tem tanta responsabilidade que, se tiver bebido, também pode haver multa.

E por falar em bebida, o costume de consumir álcool e dirigir ainda é tolerado e negligenciado em demasia no Brasil. Nos próximos dias, época de Natal, Ano Novo e esticando para o Carnaval, infelizmente veremos as drásticas consequências dessa prática nas estradas e rodovias do país. E, para piorar, há muita gente que até valoriza, tira onda, conta vantagem de beber e sair dirigindo. Segundo o Departamento de Polícia Rodoviária Federal, “numa lista de causas de desastres, a ingestão de álcool aparece entre os sete vilões das estradas. Não se pode negar que motoristas alcoolizados potencializam a gravidade dos acidentes”. “O álcool é um forte depressor do Sistema Nervoso Central. Por isso, quem bebe e pega o volante tem os reflexos prejudicados. Fica mais corajoso, mas reage de forma lenta e perde a noção de distância. Quando é vítima de desastre de trânsito, resiste menos tempo aos ferimentos, já que as hemorragias quase sempre são fatais”.

O carro pode ser uma arma. Charge de Arpa Cartum. Desenho realizado para participar do 2° Salão de Humor de Belo Horizonte – MG, que tinha como tema: Transporte e Trânsito

O desrespeito à Lei Seca continua fazendo vítimas e a recusa à utilização do bafômetro só mostra o tamanho da impunidade tolerada. Entristeço-me quando observo o comportamento de pessoas, dentre elas inúmeros jovens, que debocham da lei e estão se lixando para a segurança e a vida das outras pessoas. Em uma reportagem da TV Bandeirantes, vemos o que anda acontecendo nas noites, quando o jovem diz rindo que, se atropelar alguém, “aí a gente paga fiança e sai”. Rindo! E se alguém aparecesse num vídeo depois de ter atropelado a mãe ou o pai dele, risse e dissesse que pagaria fiança? Será que ele acharia engraçado também? Será que iria rir junto?

Das consequências do machismo

Embora tal comportamento desrespeitoso seja disseminado pelo país, tanto entre homens e mulheres, de longe as colisões mais graves e violentas ainda são cometidas por homens. Já abordamos que o carro está ligado à virilidade masculina (“Um dia sem carro”), mas não só basta ter um carro, pois é preciso dominá-lo, saber manejá-lo para aproveitar suas funções e atingir o máximo desempenho possível. Infelizmente, em muitas das vezes isso se expressa em altas velocidades e outros desrespeitos à lei de trânsito. Sem contar quando tais fatores estão misturados à bebida alcoólica. Como é possível que ainda quase ninguém relacione parte dos problemas no trânsito à questão de gênero? Verbalizar isso pode ser um meio de encontrar alguma solução.

Desde que nascem, a maioria dos meninos ganha um carrinho de brinquedo. Com o tempo, para muitos deles o carro se torna objeto de desejo, um sonho de consumo. A possibilidade de comprar um carro também é a possibilidade de se tornar mais poderoso, de atingir uma posição de destaque, talvez de se mostrar para os companheiros da turma e, no imaginário popular das relações heteroafetivas, até um meio de atrair mulheres, remetendo ao comportamento dos ditos “machões”. Faz parte da construção da identidade masculina. Meninos são ensinados a dominar os medos, a não demonstrar as fraquezas, a se sentir seguros, inabaláveis, a não chorar etc. No trânsito, muitas vezes todas essas características se traduzem em cantar pneu, “costurar” na pista, dirigir em altíssimas velocidades, também se traduz em batidas, desastres e mortes. No controle de uma máquina pesada, a violência pode adquirir formas extremas e fatais. E quanto mais potente o carro, melhor.

Quem nunca ouviu que é “muita testosterona junta”, que “homem não cresce mais que 12 anos”, que isso é “típico” do comportamento de homens ou de mulheres. Bastam desses clichês! Se não começarmos a prestar atenção em como meninas e meninos são educados e observarmos com cuidado e sensibilidade os efeitos dessa educação, tudo vai continuar na mesma. Enquanto o machismo não for visto como violência de modo geral, não haverá solução satisfatória para inúmeros problemas sociais. Temos que integrar os conceitos e lançar um olhar sistêmico sobre a realidade social. Homens são os que mais matam no trânsito e verbalizar isso, além de discutir as questões concernentes, pode levar à diminuição do número de mortes nas estradas.

O que podemos fazer para começar a mudar esta situação?

Certa vez, estava numa festinha e vi que um amigo de amigos meus se despediu de todos com uma garrafa de uísque nas mãos, depois de ter tomado boas doses da bebida. Eu ponderei se devia falar algo, mas não falei. Fiquei quieta, como uma cúmplice. Se numa festa, uma pessoa bebe, é problema dela; se ela bebe e quer dirigir, o problema passa a ser coletivo e também fui irresponsável por não impedir que ele pegasse o carro naquelas condições. E pensar em quantas vezes deixamos passar…

Motorista, se estiver com sono ou tiver bebido, não dirija. Peça para que os caronas coloquem o cinto de segurança tanto no banco da frente quanto no de trás. Comece a parar o carro na faixa de pedestres, sinalize para o pedestre que ele pode atravessar tranquilo, mesmo que ele fique lá parado e ache estranho. Buzine para os apressadinhos que metem o pé no acelerador no sinal já vermelho em pleno cruzamento. Seja responsável e dê o exemplo. Em caso de atropelamentos, até os mais leves, não deixe de ir atrás dos seus direitos e exija punição. Que um mínimo de justiça seja feita.

Claro que fazer justiça não traz ninguém de volta. Só quem passa pela experiência de perder um ente querido, de uma hora para outra, sabe o quão surreal é. A pessoa sai de casa e nunca mais volta, simplesmente desaparece, porque morrer é para sempre. Para evitar tantas tragédias familiares, tanta dor, lágrima e sofrimento, faz-se urgente a conscientização no trânsito em conjunto com as ações de fiscalizar e punir. Sim, ação, porque não dá mais para ficar de braços cruzados.

Folder da campanha de conscientização para o trânsito, concebida pela parceria da OAB-Paraíba e Mov Paz (Movimento Internacional pela Paz e Não-violência)

*Imagem destacada:  Acidente de trânsito em Curitiba. Foto de Guilherme Apoolinário no Flickr em CC, alguns direitos reservados.