Texto de Deh Capella.
Na última semana, as listas de discussão que assino foram bem movimentadas por um assunto em comum: a prisão, na França, de mulheres que estavam usando burca ou véu islâmico (aquele que cobre o rosto e deixa apenas os olhos de fora) em locais públicos. De acordo com as autoridades francesas a medida tem como objetivo preservar a dignidade da mulher e se alinhar com a política de proibir a presença de símbolos religiosos em locais como escolas e órgãos públicos.
A questão é espinhosa porque envolve ao mesmo tempo, e de forma contraditória, uma grande gama de valores e suscita várias perguntas. A discussão, pra mim, não tem fim mesmo. Quer ver só?

- a burca é um símbolo religioso incontestável. Mas por que, então, não se proíbem outros símbolos religiosos envergados por pessoas, como…crucifixos, solideus, turbantes ou mesmo as barbas longas que são comuns a muçulmanos?
- franceses levam muito a sério o laicismo do Estado (ao contrário dos brasileiros – que atire a primeira pedra quem nunca viu Bíblia aberta ou crucifixo pendurado em repartição pública), mas esse princípio deve ser colocado acima da liberdade individual da pessoa se vestir como quiser?
- se os muçulmanos são o grupo diretamente afetado pela proibição, como o governo francês pretende lidar com o descontentamento crescente dos muçulmanos, que são de 5 a 6 milhões de pessoas na França? É interessante para o Estado fomentar impopularidade e jogar mais lenha na fogueira do preconceito contra imigrantes?
- se o governo afirma que o pacote de leis pró-laicidade é dirigido a todas as religiões, por que logo os muçulmanos são os maiores atingidos? (a Folha de São Paulo de hoje noticia que orações nas ruas serão proibidas no país e isso também afeta principalmente a população islâmica).
- a burca pode ser considerada uma prisão, porque esconde e isola a mulher, além de uniformizar a aparência e apagar a subjetividade. Mas alto lá! Somos ocidentais falando sobre um costume que pode não incomodar outras pessoas da mesma forma. Como lidar então com a questão das mulheres que querem usar a burca ou o véu?
- pressupondo que há mulheres que deixariam de usar a burca e o véu, se pudessem, e mulheres que o usam porque querem, como separar esses dois grupos? Como saber quem vai usar apenas porque quer e quem vai usar porque há pressão social para isso?
- se o governo francês pretende multar e/ou prender usuárias de burca e véu, como fica a situação das mulheres que podem sofrer represálias se saírem de casa em roupas comuns? Que tipo de amparo pode ser dado a elas?
- pode-se considerar que uma consequência da proibição talvez seja um isolamento maior de mulheres muçulmanas – que deixarão postos de trabalho e bancos escolares por simplesmente não saírem (por escolha própria ou imposição) de casa sem burca ou véu?
- questão levantada nas duas listas: as mulheres ocidentais possuem “prisões” equivalentes à burca ou o véu? A depilação, por exemplo, pode ser considerada uma imposição equivalente à imposição do uso da burca? Nosso código de vestimenta pode ser considerado restritivo? Nós vivemos a experiência de ter um corpo livre?
Como disse lá no comecinho, é um assunto espinhoso que transita por uma série de temas e exige que a gente exercite ao mesmo tempo: nossa capacidade de refletir sobre liberdade e nossa visão sobre o que é diferente do nosso contexto e das nossas experiências. Espero ter deixado bastante material pra essa reflexão. E aí, o que você acha?
Mais alguns textos para pensarmos:
[+] Opera Mundi – Proibição a burca na França: oprimir para libertar?
[+] Cynthia Semiramis – Roupas também são uma forma de opressão.